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quarta-feira, 31 de janeiro de 2018





                 Artista plástico Baiano  Ângelo Roberto  nos  deixa 



           O artista plástico baiano Ângelo Roberto deixou as dimensões deste velho mundo na manhã deste domingo (28), aos 80 anos. O corpo dele  foi cremado na segunda-feira (29), às 11, no Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador. Ângelo era especialista em ilustrações com bico-de-pena, e muitos de seus quadros retratavam cavalos. A causa da morte não foi divulgada pela família.
        O falecimento de Ângelo foi comunicado pela sua filha Iana Landim, em uma postagem nas redes sociais. No comunicado, Iana se refere ao pai como seu maior ídolo e artista. Ângelo nasceu na cidade de Ibicaraí, no sul da Bahia.
      Amigos e familiares fizeram comentários de pesar. "O artista se eterniza na arte, e o pai, na família, que é a continuação de tudo... Força... Um grande abraço em todos vocês", observou contrita uma dessas pessoas.
     Com exposições no exterior, prêmios importantes, Ângelo Roberto pertenceu à Geração de Glauber Rocha, que na década de 60 movimentou o ambiente cultural de Salvador, liderada pelo fundador do cinema novo e os jovens Florisvaldo Mattos, Paulo Gil Soares, João Carlos Teixeira Gomes e Fernando Rocha Perez.  
      Ilustrou capas e livros dos autores baianos Florisvaldo Mattos, Guido Guerra, Cyro de Mattos, Fred Souza castro, Adelmo Oliveira  e Ruy Espinheira Filho. Do itabunense  Cyro de Mattos ilustrou os livros “A Casa Verde e Outros Poemas”, “Histórias Dispersas de Adonias Filho”,  “Oratório de Natal”, “As Criações de Adonias  Filho”, “Alma Mais que Tudo” , “Cancioneiro do Cacau”, “Poesie Brasiliane della Bahia”, publicada na Itália,  e “Onde Estou e Sou”.


domingo, 28 de janeiro de 2018


O baiano Ângelo Roberto,  ilustrador de vários livros de nossa autoria, faleceu hoje pela manhã em  Salvador. É triste, muito triste a notícia, está doendo muito. Em 1999, no meu livro "O Mar na Rua  Chile", dedico uma crõnica a esse amigo de geração e parceiro na arte. Reproduzo abaixo a crônica referida,  maneira de homenagear um pouco o  valor desse genial poeta do traço.  



Admirável Ângelo Roberto

                                 Cyro de Mattos

Diante dos desenhos de Ângelo Roberto, baiano de Ibicaraí, radicado em Salvador desde 1948, a primeira impressão que se tem  é de que a vida é ato de amor. Figuradas no real, criaturas simples sugerem o visual cativante através  de uma poetização imaginativa. Mãos e pés enormes não representam detalhes encaixados de maneira inteligente no humano que se pretende figurar. É mesmo o jeito próprio de imaginar o humano em seu excesso de pobreza, a nos atingir com amor em sua simplicidade. Podemos  perceber  isso  na imagem do menino, abraçando o cavalo amigo com todo o calor do coração. Em são Francisco de Assis e seus pássaros que acendem o dia, levando fraternidade pelos quatro cantos cardeais. Ainda na lágrima    da criança triste, riscada no instante do trauma causado  pelo passarinho morto na gaiola.
Ângelo Roberto, como se vê, é um poeta do traço expressivo. A  imaginação rica que possui lateja no drama  como um feixe de nervos numa só ritmação. Sensorial, intensa, sutil nos pontos que o artista sabe imprimir com mestria nas linhas. Nos poros abertos de sua verdade sentida pela vida. Linha, ponto e movimento pulsam com amor ao mesmo tempo, numa só projeção do drama. Flagrado no episódio tendo às vezes a configuração no mais exterior uma significação interna, de dor e cisão súbita feita na existência rústica. Acontece assim a concentração de forças que vibram na expressão oculta do vaqueiro baleado.
Já se disse que poesia é concentração, iluminação do ser e verdade no seio da linguagem plasmada. Então percebemos assim que Ângelo Roberto oferece com freqüência ao desenho momentos de poesia significativa. O gesto simples do artesão por suas criaturas, fraterno e doce tantas vezes nas emoções captadas configura na superfície branca o espírito pontilhado e delineado com o traço leve quando corporifica a matéria. Diríamos que a vida nesse instante flutua ou se flagra naquela zona suspensa do azul, que há muito tempo coabita dentro de nós, naquela aderência mansa de certo clima poético em nossa paisagem íntima.
Vagares de ternura, revelação solidária da tristeza, instante cálido da mulher com  flor no seio. Tudo idealizado por meio de pontos e linhas que determinam  um ritmo suave. Configuram na expressão segura o tema real do imaginário com objetivo de transmitir valores emotivos. Representam com habilidade a arte de riscar uma geometria que se projeta no tempo do viver, do sentir e do amar, para ocupar determinado estado onírico.
Posso dizer que os trabalhos desse artista humaníssimo que é Ângelo Roberto, de rica vocação para o traço poético, mostram outra vez que a Arte é necessidade fundamental da vida como forma de conhecê-la. Concordância de verdade e beleza, vínculo de gravidade e jogo, pode até não ser substitutivo da vida, não tendo mais importância do que comumente lhe é dada. Porém, útil compartilha a solidão, cativante aproxima as criaturas, dá prazer e faz meditar dentro daquele entendimento  tácito, que a vida no ritmo feroz de conflitos e abismos das civilizações atuais é destituída de sentido efetivamente.
Feita com amor e talento, de maneira humaníssima, reveladora do ser na existência, pode não salvar o indivíduo no conturbado lado de animal social, mas é ato que torna a vida suportável, sensível e essencial.
E viver sem ela seria mesmo impossível.


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018



    Os Areeiros do Rio Cachoeira


Por José Leal*



Corumbá tem o rio Paraguai; Teresina, o velho Parnaíba de águas barrentas; Porto Alegre, o Guaíba. Enfim: cada cidade tem o seu rio e cada rio tem os seus cantores. O de Itabuna, no sul da Bahia, é o Cachoeira, que está para a capital do cacau assim como o Pão de Açúcar para a Guanabara: é o símbolo da cidade. Um símbolo sereníssimo em tempo de estio, belo, ao mesmo tempo “ sofrido com sua gente simples escorrendo o esforço de manhãs e tardes no calendário líquido da vida ” - como diz o contista Cyro de Mattos, recém aparecido na paisagem das letras nacionais com o livro “ Berro de Fogo”.

Claro que o Cachoeira tem também as suas lavadeiras, pescadores e aguadeiros. Mas não é sobre essa gente humilde que vamos dizer algumas palavras: um poeta local, Firmino Rocha, um grande poeta, já entoou um hino muito bonito para essas mulheres admiráveis, as lavadeiras. Nosso assunto é sobre os arreeros, homens e meninos que buscam no fundo do rio areia para as construções de Itabuna. Areeiros que tangem “ jumentos no toque-toque repetitivo dos dias, pelas ruas nem sempre calçadas, levando as cargas de areia nas latas, em perfeito entendimento com o seu dono, que os tange rumo às construções nas ruas próximas e nos bairros distantes” - ainda segundo Cyro de Mattos.

Os areeiros do rio Cachoeira são tipos que o repórter desconhecia: o caminhar dos jumentos que transportam areia pode parecer um desfile até certo ponto monótono e triste, mas seus donos são homens alegres, sempre sorrindo e satisfeitos com sua profissão. O rio Cachoeira sem eles certamente perderia muito de sua beleza. É que os areeiros fazem parte da paisagem grapiúna, e o velho Teodoro - o mais antigo de todos - ama o seu rio, o rio que lhe dá sustento e aos seus.

- Quanto ganham?

- Depende. Cada carga de areia de quatro latas custa quase nada e ganha mais quem possui maior tropa de jegues ou jumentos. Um areeiro pode ganhar até 10 contos por dia. Mas, para isto, precisa trabalhar da aurora ao crepúsculo, sem parar, e precisa ter compradores para sua mercadoria, que é a areia cor de chumbo arrancada do fundo do rio, nas épocas em que o Cachoeira está baixo, pois durante as cheias “ele não respeita nem o rico”, como diz Teodoro, O Cachoeira avança desordenadamente e invade as ruas de suas margens, principalmente quando há enchentes ( e duas delas ficaram para a história grapiúna), o que levou um poeta popular de Itabuna a dizer em versos:

“Tinha gente que acordava Naquele grande alvoroço A água levando tudo Fazendo o maior destroço O pobre salvava a vida Com água pelo pescoço”.

Assim, tempo bom para areeiro é tempo de seca: o rio é manso, as águas correm vagarosamente, é mais fácil arrancar a areia com a pá, que serve também de remo para aqueles que enchem os caíques (canoas) da carga, depositando-a depois na margem do rio, de onde ela é colocada nas latas, formando a carga que será levada pelos passos cadenciados dos jumentos, ora apressados ora lentos.

Infelizes os areeiros? Não. Por incrível que pareça são homens que estão em paz com a vida e com o mundo. De vez em quando aparece um prefeito que tenta atrapalhar o ganha-pão dos areeiros com regulamentos, portarias ou decretos. Mas aqueles homens sabem que existem leis e poderes superiores. Recentemente, o prefeito de Itabuna tentou proibir o trabalho dos areeiros cobrando um imposto muito alto. Eles recorreram à Marinha de Guerra, ali representada por um Sargento, ganharam a questão e, segundo Teodoro, “ nós hoje tira areia até debaixo da casa dele, se ele se meter a coisa”.

Assim vivem os areeiros do rio Cachoeira, contribuindo no anonimato para a grandeza de Itabuna, para o seu progresso, para as construções que se erguem, para os prédios novos que os coronéis do cacau começam a levantar na cidade bonita e pujante.

(Fonte: Revista O Cruzeiro de 25 de março de 1967)

*José Leal  foi repórter renomado da revista  O Cruzeiro na década 60.  Venceu  o Prêmio Esso de Reportagem, patrocinado pelo “Jornal de Letras”, Rio,  com o livro As Fronteiras da Loucura. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018



               Centro Lusófono russo prepara 
                antologia de contos brasileiros



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          O Centro Lusófono Camões, da Universidade Estatal Pedagógica Herzen, de São Petersburgo, está preparando a publicação de uma antologia de contos brasileiros contemporâneos em edição russo-portuguesa. Segundo o diretor do Centro Lusófono, professor Vadim Kopyl, responsável pela publicação, a antologia reunirá mais de 30 autores e será dedicada à memória do ex-embaixador do Brasil em Portugal (1979-1983), Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010), antigo sócio honorário da instituição, que exerceu postos na Embaixada do Brasil em Moscou, foi chefe de gabinete no Ministério das Relações Exteriores e presidente do Conselho Permanente da Organização de Estados Americanos (OEA), em Washington, entre outros cargos.
            Os contos estão sendo traduzidos por professores-tradutores ligados à instituição. Entre os autores selecionados, estão Adelto Gonçalves, Adriano Edson Macedo, Anderson Braga Horta, Branca Maria de Paula, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Pessoa Rosa, Carlos Trigueiro, Cyro de Mattos, Cunha de Leiradella, Dilermando Rocha, Edmar Monteiro Filho, Edson Amâncio, Eltânia André, Francisco Magno, Helena Parente Cunha, Iacyr Anderson Freitas, Ivan de Castro Alves, Ivan G. Ferreira, Luiz Ruffato, Jaime Prado Gouvêa, Lustosa da Costa (1938-2012), Oleg Almeida, Ozias Filho, Pedro Maciel, Rejane Machado, Ronaldo Cagiano, Rubens Neco da Silva e Susana Fuentes, entre outros.
            Em abril, na Embaixada do Brasil em Moscou, foi lançado o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (1881-1922), publicado por uma editora de Moscou. Nos anos anteriores, foram apresentados ao público os livros Contos de Machado de Assis eContos Escolhidos de Machado de Assis, publicados em edição bilíngue russo-portuguesa pelo Centro Lusófono Camões em 2006 e 2007, respectivamente, com prefácios do escritor e professor Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).

Desde a sua fundação em 1999, o Centro publicou também em edições bilíngues os livros Guia de Conversação Russo-Portuguesa ContemporâneaPoesia Portuguesa Contemporânea (2004), que reúne poemas de 26 poetas portugueses, e Vou-me embora de mim (2007), do poeta português Joaquim Pessoa. Em 2013, a Embaixada do Brasil em Moscou apoiou a publicação da segunda edição revista do livro Contos Escolhidos de Machado de Assis. O Centro Lusófono Camões mantém estudantes nos níveis zero, médio e superior.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

                  



                 A Triste  Crônica de Nelly Novaes Coelho
                     


                                                           Cyro de Mattos                                         
                 


                  Nelly Novaes Coelho é uma dessas criaturas belíssimas  que encontrei na vida. Intelectual de expressão enorme, erudita, sensível, solidária e ética. Tive o grande prazer de conhecê-la quando fui receber de suas mãos O  Grande Prêmio  da Associação Paulista dos Críticos de Artes, no Memorial da América Latina, em 1992, concedido ao nosso livro de poesia infantil . Ela foi a relatora da comissão julgadora,  que contou ainda com a participação de Tatiana Belinky e Pascoal Mota. Quanta alegria conhecer aquela mulher baixinha, de sorriso afável,   olhos no óculos de lente grande  que viam e compreendiam  o que  estava no mundo para ser alcançado.
               Dali para frente  mantive correspondência regular  com umas das intelectuais mais lúcida em nossas letras, portadora de um discurso simples, mas rico de análise, que impressionava bastante.   Que bênção! O tom de suas cartas era sempre atencioso, deixava a minha alma pingando ternuras.   Tive uma boa surpresa quando recebi comentário como autor infantojuvenil no seu  esplêndido Dicionário crítico de  literatura infantil e juvenil brasileiro. Outra belo susto que eu tive  foi  quando vi minha ficção de contista ser objeto de estudo no  monumental volume  Escritores brasileiros do século xx. Nessa obra, de novo ela demonstra  ser uma ensaísta de fôlego vasto,  que tem conhecimento notável dos meandros da escrita,   da vida e do contexto dos escritores estudados na obra.   Ao escrever esse livro, Nelly Novaes Coelho ainda estava em plena atividade intelectual,  tinha 91 anos,  idade em que muitos  já penduraram suas ferramentas de trabalho.  
          Vale a pena lembrar que com 752 páginas, 1401 verbetes, o Dicionário crítico de escritoras brasileiras, de Nelly Novaes Coelho, registra de modo condigno  “ a voz de   mulheres que vêm dando seu testemunho de vida e ideais, por meio da Palavra”. Dado que a literatura  é forma ampla de conhecimento dos humanos no mundo, a obra que foi organizada pela escritora renomada, Doutora em Letras da USP,  reveste-se de pontos elevados na valorização do corpo literário brasileiro.
       Ao registrar  inúmeras vozes femininas de todos os estados brasileiros, em sua contribuição enciclopédica, Nelly Novaes Coelho, como os iluministas de ontem,  desincumbe-se da jornada extensa  com erudição, consciência crítica e lucidez de pesquisadora dotada de santa paciência. É muito pouco o que estou informando sobre a bagagem,   atuação e  produção de uma intelectual incansável como a Nelly. Por seus feitos literários incríveis, ela  merecia as melhores homenagens  em vida. Quando indiquei   com os escritores Caio Porfírio Carneiro e Nicodemos Sena o seu nome  para ser distinguido com  O Trofeu Juca Pato da União Brasileira de Escritores (SP),  foi  vítima de um processo eleitoral duvidoso,  e  seu nome  não foi sufragado. Mas ela era maior do que certas atitudes deploráveis e honrarias dessa espécie.

 Soberba como ensaísta e,  como  professora universitária, contribuiu  para a formação de inúmeras gerações no campo das Letras. Sua família ignorou a grandeza dessa mulher incomum.   Ao ficar doente,   foi blindada pela família, que não permitiu a  visita dos amigos, dos que lhe tinham afeto, e de seus admiradores.   Meu Deus, quanto egoísmo, para não dizer escuridão,    pobre de  nós seres humanos, metidos a donos de tudo.  Agora essa notícia triste, que  tomo conhecimento através do escritor  Ronaldo Cagiano,   Depois de um mês  de seu falecimento, a  imprensa divulga  o fato  em notas acanhadas. A doce, ética e intelectual maiúscula Nely não merecia tanta maldade. 

terça-feira, 9 de janeiro de 2018


A SEGUNDA MORTE DE NELLY NOVAES COELHO

Ronaldo Cagiano (*)


               A notícia da morte da escritora, crítica e ensaísta Nelly Novaes Coelho chega ao conhecimento público com grande atraso, de acordo com noticiado no Estado de S. Paulo de em 28.12.17, tendo ela ocorrido um mês antes, em 29.11.17. É de estarrecer e entristecer que uma intelectual de sua dimensão e importância para a literatura brasileira desapareça, sem que a imprensa saiba e seus amigos, leitores e admiradores pudessem prantear a sua perda ou homenageá-la, como merecia, pela sua estatura cultural e humana, por todos (re)conhecida.
            Na esteira de seu desaparecimento, abro um parêntese, para constatar, com tristeza e revolta, também essa tendência, cada vez mais assente, se de jogar no cesto do silêncio gente que tanto fez pela literatura, como Nelly, que parte num momento crucial da cultura brasileira, amesquinhada sempre pelo mais do mesmo. Quando o mercado editorial não dá espaços para intelectuais como ela, que descarta o “velho” e sabota os “idosos” em nome de ume geração literária descolada, que não tem nada para oferecer, senão suas carinhas rendidas e vendidas às feiras literárias, verdadeiras quermesses onde mais valem como fetiche e produto do que como criadores. Quando não temos mais editores com o feeling de um Ênio Silveira ou um José Olympio, mas executivos com olhos nas planilhas, que olham para o mercado e não para o talento do autor ou a qualidade da obra. Quando não há críticos como Antônio Candido, Wilson Martins, Antônio Olinto, José Guilherme Merquior, José Veríssimo, Otto Maria Carpeaux, mas esses comunicólogos de carteirinha (no dizer do saudoso Cassiano Nunes, professor da UnB), ruminando releases na grande imprensa. E tantos outros exemplos de vítimas desse sistema editorial monopolista, cartorial, mercenário e excludente, incensador de mediocridades e negligente com os verdadeiros talentos, que ao longo das últimas décadas relegou, como Nelly, tanta gente ao destino do ostracismo, silêncio e esquecimento, como um Rosário Fusco, um José Carlos Oliveira, um Ricardo Guilherme Dicke, uma Orides Fontela, um Samuel Rawet, um Osman Lins, uma Dora Ferreira da Silva, um Campos de Carvalho, um José Agripino de Paula, um Caio Porfírio Carneiro, uma Eunice Arruda, e, ainda mais recente, o lendário José Louzeiro, felizmente relembrado em oportuna resenha de Afonso Borges em sua revista eletrônica “Mondo Livro”.
                   Reporto-me ainda à notícia anterior do mesmo blog do curador do Projeto Sempre um Papo, em que o falecimento (culminado com seu completo desconhecimento) de Nelly Novaes Coelho é abordado por Afonso Borges para destacar a imperdoável omissão que cometeram, tanto a família, que a blindou num cárcere de silêncio por cerca de três anos, em nome de uma proteção para tratamento de saúde, alijando o fato da imprensa, que não pôde dar a devida cobertura ao fato, talvez, até mesmo, por culpa e obra desse completo alheamento a que ela foi jogada e da impossibilidade de acesso a qualquer notícia sobre suas condições.
Indaga Afonso, em sua comovida e estarrecida constatação: “Quem roubou a paz de Nelly Novaes Coelho? Quem nos roubou da paz de Nelly Novaes Coelho? Por onde andou nestes últimos anos? Por que só ficamos sabendo da sua morte um mês depois?”
            O jornalista, depois de coligir várias fontes, apenas confirmou o que já era rumor no meio literário, pelo menos dos que com ela conviviam e a conheciam – sobre sua internação e a consequente proibição de encontros ou contatos com amigos e colegas de ofício. Havia razão plausível para escondê-la do meio que sempre foi seu pulmão, chão, teto e horizonte? O articulista confirmou esse desaparecimento inusitado, a interdição de uma vida ainda em plena atividade e lucidez, que não merecia o destino do degredo numa instituição geriátrica, colhendo de suas consultas o sentimento de indignação e perplexidade de tantos quantos a conheciam e admiravam.
           Apenas para argumentar, ainda que Nelly tivesse sido acometida de uma ocorrência mais grave (por exemplo: um AVC? Um Alzheimer? Uma debilidade cardíaca? Uma queda? um processo de senilidade?), que a incapacitasse física e intelectualmente a ponto de interromper sua capacidade de comunicação e discernimento, não seria o caso de privar seus amigos e admiradores de notícias, ou mesmo de uma visita. Era o mínimo a se fazer por alguém que tanto fez por tantas gerações quando no pleno (e vigoroso) exercício de suas atividades como professora, escritora, críticas e editora de cultura em jornais importantes.
          Eu mesmo sou testemunha de sua inteireza física e mental nos tempos que antecedem a esse imposto deletar em vida. Não muito antes de ser tirada de circulação (éramos vizinhos de rua na Bela Vista; eu morava na Rua Dr. Seng e trabalhava a Al. Joaquim Eugenio de Lima, a poucos metros de sua residência, na Rua dos Franceses). Nos dez anos em que vivi em São Paulo encontrei-me várias vezes com Nelly, a quem devo, desde o meu primeiro livro publicado nos anos 80, quando morava em Brasília, a generosidade de sua recepção e apreciação crítica. Numa dessas vezes, estivemos em seu condomínio, na casa de uma amiga comum, também escritora, que lhe prestou uma homenagem, num encontro, em que muito se conversou sobre literatura. E ela com seus 91 anos, forte, entusiasmada, povoada de planos e vivíssima e antenada com o que se passava na literatura contemporânea. Foi uma noite memorável, em que atestamos sua disposição e saúde, compartilhou conosco suas ideias sobre literatura, suas experiências no campo intelectual, sem qualquer sinal de esmorecimento de sua disposição. Aliás, entre todos, sem dúvida, era a mais animada e sem indícios de fadiga.
               Em meados de 2013, dividi com ela uma mesa na Casa das Rosas, a convite do editor e escritor Nicodemos Sena, numa sessão dedicada à discussão sobre o romance “Deus de Caim”, de Ricardo Guilherme Dicke, por ele reeditado e resgatado pela Ed. Letra Selvagem. Foi um momento epifânico em que a professora e ensaísta discorreu por mais de uma hora, secundada pela professora e escritora Raquel Naveira e pelo jornalista Lorenzo Falcão, de Cuiabá, abordando aspectos críticos e estéticos da obra do escritor e filósofo mato-grossense, até então relegado ao anonimato depois de uma carreira vitoriosa nos tempos em que viveu no Rio.
            Nelly protagonizaria meses depois outro momento de inteireza física e mental, quando foi prestigiada pelo mesmo editor e amigo, que publicou e lançou naquele mesmo espaço da Av. Paulista sua recente obra, ‘Escritores Brasileiros do Século XX”, um caudaloso, exaustivo e fundamental compêndio que mapeia a produção ficcional brasileira desde os primórdios do Modernismo. Naquela oportunidade, casa lotada e com vários escritores presentes para saudá-la, entre eles, Benjamin Abdala Junior, Ignácio de Loyola Brandão, Fábio Lucas, Cyro de Mattos, Alaor Barbosa, Ricardo Ramos Filho, Ana Maria Martins e Miguel Jorge, Nelly era a própria imagem da intensidade criativa e da paixão literária, momento em que soubemos que Nelly ainda estava com o fôlego a mil, prometendo para breve uma obra sobre a presença feminina da literatura brasileira, um projeto “in progress”.
            Algum tempo se passou, encontrei-me algumas vezes com ela na vizinhança e mesmo após ter tido um problema cardíaco, dizia-se em franca recuperação, sem qualquer sinal de debilidade física ou mental, quando a encontrei na saída de uma agência do Banco Itaú e perguntei pela sua saúde. Daí em diante, não a vi caminhar nem a encontrei mais, como costumeiramente acontecia, por aquelas vias da Bela Vista. Preocupado, indagava a amigos, conhecidos e colegas sobre seu paradeiro e já começavam a circular informações de que teria sido internada numa instituição clínica de repouso, que foi desautorizada a receber visitas e esse “apartheid” social e intelectual ficava cada vez mais evidente, pelo seu sumiço e pela ausência de notícias que dessem conta de seu estado.
            Para minha surpresa, por volta de julho de 2016, encontrei vários livros autografados para Nelly Novaes Coelho no Sebo do Messias, atrás da Praça da Sé, uma livraria que visitava com frequência. Entre livros oferecidos por autores nacionais e estrangeiros, conhecidos ou não, encontrei um dos meus, “Canção dentro da noite”, a ela enviado na década de 90. Essa foi a senha para descobrir que Nelly Novaes Coelho tinha sido “enterrada” em vida e seu acervo vendido a alfarrabistas (certamente sem seu consentimento, como é de se prever em casos como esse, quando alguém é inviabilizado e encerrado num asilo e decretada compulsoriamente sua incapacidade), atitude deplorável, que consiste verdadeiramente num crime de lesa-literatura. Entendo que o patrimônio bibliográfico de Nelly deveria, no mínimo, ser tombado por uma grande biblioteca pública (de uma universidade, de uma academia, de um centro cultural), por ser repositório da memória pessoal e literária de um país, mas também por respeito a alguém, como ela, que deu a vida pelas Letras; que, com sua generosidade, abriu espaço, dando voz e vez a muitos autores, quando militava na grande imprensa e nos cadernos de cultura, algo hoje raro entre os nossos pares.
           Por mais explicações que se queira retirar dessa história, não se pode compreender, muito menos aceitar, que um patrimônio – não apenas intelectual, mas acima de tudo moral e ético – seja desprezado e arruinado com tanta velocidade, num desrespeito á sua vida e à sua inestimável contribuição à inteligência nacional. E o pior, desmonte feito ainda em vida – crime maior e indesculpável. Será que a família de Nelly Novaes Coelho tinha noção do seu tamanho e da dimensão de sua atuação no campo literário e intelectual? Com certeza, não; senão, seus livros não teriam ido parar num sebo. E nenhuma explicação há de convencer-nos da necessidade de desfazer-se desse acervo que, sem dúvida, continha grande parte da memória bibliográfica do Brasil nas últimas décadas, incluindo-se a sua epistolografia.
Como disse Afonso Borges, “onde estará Nelly Novaes Coelho? Onde? E qual o motivo? Por que isso, assim? Saberemos, algum dia?” Perguntas que não querem calar...
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(*) Escritor, autor de “Eles não moram mais aqui” (Prêmio Jabuti 2016) vive em Portugal.