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quinta-feira, 28 de setembro de 2017



Um Museu Importante que Foi Casa
 de Coronel de Cacau Está Desativado

                                                 Cyro de Mattos

A Fundação Henrique Alves dos Reis foi forçada  a ficar desativada  em 1990, em razão da falta de recursos e, com isso, o município de Itabuna sofreu uma grande perda dentro do contexto cultural de seus espaços mais importantes. A Fundação era mantida com os rendimentos de 2.500 arrobas de cacau que a fazenda Sempre Viva produzia anualmente. O baixo preço do produto àquela época e a carestia imposta por uma inflação galopante fizeram com que  se tornasse inviável a sua manutenção. Em época mais recente, ainda como fator negativo para reativar a fundação Henrique Alves dos Reis, interferiu o advento da praga da vassoura-de-bruxa, contribuindo para a quase devastação da lavoura cacaueira.
Idealizada por dona Elvira dos Reis Moreira para perpetuar a memória do pai, coronel Henrique Alves dos Reis, desbravador e  chefe político de grande influência no município,  a Fundação foi instalada em 11 de setembro de 1978, mas em 10 de maio de 1974 já existia  o Museu Casa Verde, que passou depois a integrar o patrimônio da instituição. Funcionava no local onde,  no princípio do século XX, existia um armazém para a comercialização e  depósito do cacau.  Com a destruição do armazém, foi erguida em seu lugar a Casa Verde, datada de 1887, onde moraram o coronel Henrique Alves dos Reis e sua mulher, dona Cordolina Loup dos Reis, a filha Elvira e o genro, Miguel Moreira, que foi prefeito de Itabuna.
O Museu Casa Verde preserva o passado da conquista e do domínio dos coronéis do cacau, um tempo áureo da civilização grapiúna visível nas peças e indumentárias dos séculos XIX e XX, pertencentes à família do coronel Henrique Alves dos Reis. O mobiliário ali exposto é em madeira trabalhado na Áustria e em Portugal, conservando o museu um acervo constituído de mais de 2.500 peças de cristais de Baracat, prata, coleções belíssimas de biscuits franceses, aparelhos de  café e jantar de Limoges e da Inglaterra, conjunto de talheres de Cristophe, móveis em estilo Luís XV, bandejas, jarros,  e bacias em louça chinesa, floreiras em electroprata, além de objetos pessoais; fardamentos, espadas, moedas em prata dos primeiros anos do século XX, vestidos, chapéus e leques.
Documentos valiosos sobre a memória política da cidade estão ali guardados, assim como vários números do jornal O Intransigente, um dos primeiros veículos da imprensa local, cuja primeira página  do primeiro número foi impressa em seda pura.
A Universidade  Estadual de Santa Cruz  - UESC – e o seu Centro de Documentação e Memória Regional – CEDOC – assumiram no final do século XX  a administração do Museu Casa Verde, da Fundação Henrique Alves dos Reis, em Itabuna, contribuindo  assim para formar, por extensão, o diálogo entre a memória, que é o lugar de onde emerge a história, e as pessoas que forem visitar um espaço formador do desenvolvimento sócio-cultural da comunidade baiana e, em particular, da grapiúna.
Reativar, manter e disponibilizar ao público o Museu Casa Verde, criado em 1974, significou não só preservar a memória da civilização cacaueira com o seu modo singular de vida, mas também possibilitou a construção de novos conceitos de manutenção histórico-patrimonial, em sintonia valiosa com o conhecimento autêntico do passado regional. No Museu Casa Verde percebe-se e compreende-se que ali está manifesta uma linguagem que vem do começo da civilização do cacau, formada pelos falares  e fazeres no dia-a-dia, doméstico, urbano e religioso, dentro e fora  da residência dos pioneiros que conquistaram a terra coberta de mata virgem.
Naquela oportunidade, a  reativação do Museu Casa Verde foi, ainda, um modo  eficaz de desconstituir a postura ilimitada de que modernidade e progresso, nos tempos velozes  da internet, andam de mãos dadas como meios incontornáveis para a exclusão do que seja antigo. Deu-se  oportunidade através de uma universidade criativa, e que se tornou uma sólida instituição cultural do Sul da Bahia, para conhecer e apreciar, pesquisar e estudar, duas mil peças de aspectos com os seus significados, significantes e elementos da natureza histórico-social, os quais servem sobretudo para a compreensão mais abrangente da Região Cacaueira Baiana e da História do Brasil.
No entanto, depois de alguns anos de proveitosa atuação, a parceria foi dissolvida. E,  passados tantos anos,  o Museu  Casa Verde continua desativado, causando prejuízos de natureza histórico-cultural  à comunidade  e ao Sul da Bahia, o que é lastimável.



A Casa Verde

Cyro de Mattos

O sol partindo-se nas gargalhadas.
O tempo tendo os pulsos firmes, eis
O coronel Henrique Alves dos Reis.

Na selva indômita o fino bordado
De Dona Cordolina, leves asas
Do amor que na valsa voa e suspira.

Sombras caminham no aroma de noites
Gemidas, os lençóis rangem na alcova
De Dom Miguel e Dona Elvira. A cava

Hora do rebento que nunca veio.
Ai, solidões a sugar o triste seio.
Grave paisagem grava o relógio

Na parede. Em cada coisa que toco,
Em cada voz que escuto,  em cada traço
Que adivinho. Gestos longínquos há

De um certo pássaro agora, que canta
Em mim e invisível ganha o silêncio.
Estranha vertigem do verde,  ser

Esta casa, flor que já não trescala,
Rio que não passa. No exílio ser
Turvo sonho na poeira dos marcos.

Quem sabe por que razão os cristais
Foram a manhã dessa casa? A seda
Cativou com tão suave perfume?



( Poema inspirado na casa que  serviu de residência a Henrique  Alves dos Reis, coronel do cacau,  e sua família, em Itabuna (rua Miguel Calmon),  do livro Cancioneiro do Cacau,  Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, Genova, Itália, e Prêmio Nacional  Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores/Rio).

segunda-feira, 25 de setembro de 2017




       Painel Artístico Valioso e  Maltratado
                                  
           Cyro de Mattos
          
            Com sua beleza enorme em que se retrata a  história da civilização cacaueira baiana, representada em figuras, símbolos, cenas e paisagens, o painel composto de azulejos, criado pela arte genial de Genaro de Carvalho, que fica no prédio Comendador Firmino Alves, e que alojava o antigo Banco Econômico, entre a avenida do Cinqüentenário e a praça Adami, nos idos de 1953, é indiscutivelmente um dos patrimônios artísticos de incalculável valor pertencente ao  município.  
           Não se concebe como essa obra de arte magnífica esteve entregue à indiferença de prefeitos, secretários de educação e cultura durante décadas, sendo alvo de toda espécie de mazela. Sobre a sua superfície foram pregados  folhetos de propaganda comercial e política,  vários azulejos estavam quebrados ou rachados, outros tantos não mais existiam.  Havia uma banca de jornal e revistas na frente, erguida na rua,  junto ao meio fio, que obstruía sua  visão. Faixas estendidas de um poste ao outro, anunciando algum evento, poluíam a visão do painel montado na parede como um monumento de um povo, além do tempo.
           A recuperação do painel deveu-se  à nossa iniciativa quando exercíamos o cargo de gestor cultural da cidade. Atuou como parceiro desse desafio o Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural – IPAC, sediado em Salvador. Houve a intervenção diplomática para a remoção  da banca de revista e jornal, além  do comércio informal de vendedores ambulantes, que com a  exposição de seus produtos, pregados na superfície dos azulejos trabalhados, escondiam, também,  o painel. Reconhecimento maior deve-se à atuação de Richard Wagner, um mestre da arte em murais, artista com fama mundial. Usou seu talento, paciência, amor, técnica exemplar e material apropriado, adquirido em São Paulo,  para recuperar o painel.   
        Hoje, passados tantos anos da sua recuperação, o painel sofre os mesmos abandonos de tempos passados. Existem agora, em frente ao painel,  duas  mesas com guarda-sol de praia para proteger óculos e outros produtos vendidos por camelôs.  O gradil, erguido como protetor do painel, serve para que sejam expostos óculos pendurados em mantas para atrair eventuais compradores.  Por trás do gradil, guarda-se bicicleta;   papelão, cadeiras quebradas, jornal velho  e lixo  são jogados dentro.   As faixas, estendidas de um poste a outro,  voltaram com seus anúncios de algum produto novo e barato  para  aumentar a poluição visual sobre o painel. Ó quão amarga é essa agressão a uma peça artística tão valiosa, de inegável valor, do patrimônio de um município onde nasceu Jorge Amado, o autor mais lido da língua portuguesa. 
          Até quando  vai continuar essa indiferença, deixando o que é belo ao imenso largado ao sabor da sorte?  Só depende de boa vontade das autoridades responsáveis pelo setor para que se reverta o quadro.  Não requer muito esforço a mudança na atitude omissa, apenas uma vigilância atenta,  adicionada a uma política de educação cultural perante a comunidade. Como se diz, antes tarde do que nunca.
        Prefeito, por favor, dê uma chance ao painel artístico, que retrata a civilização do cacau nos tempos áureos,  do esplêndido Genaro de Carvalho.

·        Cyro de Mattos é autor publicado em vários países europeus, Estados Unidos e México. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Itabuna e Academia de Letras de Ilhéus. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

           








quarta-feira, 20 de setembro de 2017

         


           Inútil Biblioteca Municipal
                      

                                 Cyro de Mattos

O livro é esse amigo que está sempre pronto para dizer que  na sua companhia  a vida fica melhor  pensada, sentida,  esquecemos até a morte. O lugar de guardar esse amigo precioso é na biblioteca, que pode ser particular, comunitária ou pública. É lá que se preserva nossa memória. O livro é a abertura do mundo, a biblioteca o mundo onde estamos e somos.  
Penso que a  biblioteca pública hoje presta um papel fundamental à comunidade na formação do conhecimento. É espaço para atuar na produção de novos valores, possibilitando o crescimento das pessoas.  Daí não se poder aceitar  mais a biblioteca pública como apenas um espaço de leitura e pesquisa. Mais que isso, deve empreender atividades que sirvam à comunidade como aprendizado e conhecimento da vida. Você concorda comigo? Deve funcionar  como o cérebro, o coração e o pulmão de uma sociedade ou instituição,  constituindo-se no mais valioso patrimônio, no maior e mais caro laboratório implantado para a formação de cidadãos  e  a qualificação do futuro de um país.  
           Não é o que acontece com a Biblioteca Municipal da Itabuna, cidade onde  donde nasci e resido. Com mais de duzentos mil habitantes, além de celeiro de escritores e artistas, a cidade  possui uma rede numerosa  de estabelecimento de ensino, que alcança   escolas em nível  primário e secundário, curso científico e técnico, faculdades e universidades. Tem na  Biblioteca Municipal Plínio de Almeida o espaço indicado para funcionar  como guardião de livros e documentos,  centro de pesquisas e leituras. Esse espaço, longe do ideal,  vem sendo reduzido pela Câmara de Vereadores,  que de vez em quando por lá  aparece e lhe toma um bom pedaço.  Alega-se, a cada investida, sem qualquer constrangimento ou argumento plausível,   que é preciso  ampliar o espaço físico da Câmara de Vereadores em face das demandas. Não bastasse, durante décadas,  a casa do legislativo municipal  ocupar o prédio que pertence ao patrimônio da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania.  E, pasmem os céus, não  paga nada pela ocupação indevida.   
        Há muito tempo qualquer  biblioteca pública  que se preze  tornou-se   um centro de conhecimento,  proporcionando seu espaço   à comunidade meios de   acompanhar a evolução do mundo. Se um país se faz com homens e livros, como disse Monteiro Lobato, o que se  espera de uma biblioteca pública condigna  é que seja dirigida por um técnico com nível universitário, como determina a lei, equipe modernizada e acervo atualizado. Cabe ao gestor municipal do  setor cuidar desses elementos para que esse  espaço seja intenso e melhor freqüentado. Com oficinas criativas, comemorações de datas especiais,  leitura compartilhada de obras infantis e juvenis,  lançamento de livro, teatrinho  e  contação das mais belas histórias, uma biblioteca pública poderá desenvolver uma agenda cultural significativa, não é mesmo?    

         Na situação precária em que se encontra, acervo pequeno, desatualizado, corpo de funcionário distante da realidade,  espaço físico reduzido, baixa freqüência, o  quadro da biblioteca pública de minha cidade dá pena a quem tem  um pouco de amor pela casa onde mora o amigo livro.        

segunda-feira, 18 de setembro de 2017




Teolinda Gersão na Academia de Letras da Bahia



Importante nome da literatura portuguesa, a escritora Teolinda Gersão fará palestra na Academia de Letras da Bahia no dia 21 setembro (quinta-feira), às 17 horas. A conferência abordará o seu novo romance “A Cidade de Ulisses”, recém-lançado no Brasil pela editora Oficina Raquel. A obra, muito elogiado pela crítica em Portugal, tem como contextos a antiga e a moderna cidade de Lisboa, envolvendo as artes visuais e as questões políticas. A história dos personagens centrais termina no Brasil. Após a palestra, haverá o lançamento e a sessão de autógrafos do livro. A entrada é gratuita.

No dia 20 (quarta-feira), ela falará ainda na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). A vinda da escritora à Bahia é uma parceira entre a ALB, o Programa de Pós-Graduação de Estudos Literários da Uefs e a Cátedra Fidelino de Figueiredo. A autora cumprirá agenda também nas cidades São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Petrópolis e no Rio de Janeiro, onde será recebida pelos imortais na Academia Brasileira de Letras (ABL).

Sobre Teolinda Gersão

Uma das mais importantes contistas e romancistas da literatura portuguesa contemporânea, a obra de Teolinda Gersão é consagrada em Portugal – onde tem marcado o panorama literário nos últimos 35 anos – e no estrangeiro, com livros traduzidos para 11 línguas. Alguns críticos enxergam similitude literária de Teolinda com a escrita de José Saramago, no tom coloquial, que transparece em frases populares e provérbios que utiliza nas suas narrativas, aproximando o escritor do leitor.

Até 1995, Teolinda foi professora na Faculdade de Letras e depois na Universidade Nova, ambas em Lisboa, na cadeira de Literatura Alemã e Literatura Comparada. Estudou na Alemanha e também viveu no Brasil. Recebeu vários Prêmios Literários, dentre eles Grande Prêmio de Romance e Novela da APE (1995), Prêmio de Ficção do Pen Club (1981 e 1989), Prêmio Fernando Namora (1999) e Prêmio Vergílio Ferreira (2016).

A autora publicou Prantos, amores e outros desvarios (2016), Passagens (2014), As águas livres (2013), A cidade de Ulisses (2011), A mulher que prendeu a chuva (2007), Histórias de ver e andar (2003), O mensageiro e outras histórias com anjos (2003), Os teclados & três histórias com anjos (2012), Os anjos (2000), Os teclados (1999), A árvore das palavras (1997), A casa da cabeça de cavalo (1995), O cavalo de sol (1989), Os guarda-chuvas cintilantes (1984), História do homem na gaiola e do pássaro encarnado (1982), Paisagem com mulher e mar ao fundo (1982) e O silêncio (1981).

sexta-feira, 15 de setembro de 2017




Os Cem Sonetos de Piligra
Inspirados em Jorge Amado

                      Cyro de Mattos


O soneto é uma forma fixa  de poema  com quatorze versos,  dispostos em dois quartetos e dois tercetos.   O último verso é tido como “chave de ouro”,  devendo surpreender e encantar  com a sua revelação no desfecho.  Nessa condição de fechar o soneto com chave de ouro,  o último verso  sustenta a  ideia conduzida nos anteriores.     
A paternidade de sua criação é atribuída a Pier  della  Vigna (1197-1249), poeta siciliano,  embora a  primazia da invenção  seja atribuída a outros nomes, segundo os estudiosos. O soneto foi  introduzido em Portugal pelo poeta  Sá de Miranda, no século XVI. Atravessou  anos  na península ibérica com a sua magia e poder.
 O primeiro grande poeta a cultivar o soneto foi Dante, mas coube a Petrarca dar-lhe forma e conteúdo,  imprimindo-lhe uma fisionomia própria, autônoma na estrutura modelar.   Combatido pelos vanguardistas, sua febre imperceptível  permanece até hoje,  sendo cultivado com fidelidade por poetas modernos,   com vistas a atingir o nível superior da alma,  como resultado do  micro que logra o máximo  na criação expressiva do poema, que dessa maneira, em breve espaço operacional da criatividade,  sustenta o ser em estado súbito da comoção.   
Essa forma de construção poética breve possui duas linhagens: a de Petrarca, composta de estrofes com  dois quartetos e dois tercetos, e a inglesa,  com três quartetos e um dístico.  A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas,  através do verso decassílabo usado no soneto, considerado  como o mais melodioso e harmonioso. Mas  não se pode esquecer  que há uma variação silábica na confecção dessa criatura minúscula,  chegando ao ponto de ser encontrada até mesmo   com um só verso na poesia modernista de  Cassiano Ricardo, que alia virtuosismo experimental à beleza.  
Nascem poetas que se tornam famosos com suas motivações expressas em poemas de fôlego, mas que não deixam de cultivar o soneto. Lembremos de  Dante e Gôngora ontem, Pablo Neruda mais recente.   Outros vates duram pouco tempo no mundo da poesia, saindo de cena cedo  com o timbre peculiar de seu discurso, levando  como pontuação de sua obra os sonetos. 
Na língua portuguesa, o soneto tem sido cultivado por poetas que se tornaram referência obrigatória  na arte difícil e delicada de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são exemplos:  Camões, Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca.   No Brasil: Cláudio Manoel da Costa, Gregório de Mattos,  Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima,  Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho, Vinicius de Moraes  e João Carlos Teixeira Gomes.
Em  ensaio excelente,  que antecede aos não menos excelentes sonetos do livro O labirinto de Orfeu (2014), o  ensaísta e poeta João Carlos Teixeira Gomes refere-se aos dois epítetos   “sonetoso” e “sonetífero”, criados contra os sonetistas.  Registra uma série de expressões em desfavor das andanças do  rejeitado  poema de quatorze versos:  “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor  formalista”, “chavão de segunda ordem”,  “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas” .
Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem de  imbatível  criatura nanica,  sua garra  permite que continue de pé, ínfimo caminhante do  sol e da chuva   nos seus modestos quatorze versos,  buscando em sua peripécia métrica atingir o ponto máximo do prazer na alma. Segue  indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos,  que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores,  de  poetas célebres  com suas criações em versos longos,  vasta quantidade de  estrofes.
É dado a formar uma sequência  quando  vários poemas são ligados entre si por um tema,  como se deu com os cento e cinqüenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos,  uma forma poética composta por 14 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os  primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.
         A proeza verbal dessa coisinha poética   chegou  agora ao Sul da Bahia através de  A odisséia de Jorge Amado (2015), de Piligra. Trata-se da  reunião de cem sonetos, que contam as veredas de vida percorridas pelo  grande romancista  e  falam dos seus livros  famosos. Retratando episódios de uma vida com maiúscula, incursionando pelos  livros do autor mais lido na língua portuguesa,  cheio de humanidade e  linguagem sensual, Piligra procura fixar  no encadeamento dos poemas, ao lado de sua fugacidade e beleza, momentos verdadeiros da alma do homem generoso e  consagrado romancista.   
Incorpora na estrutura da obra o ritmo de cordel, fácil de dizer,  fácil de ouvir, fácil de entender. Torna desenvolta a narrativa poética de seu estro derramado,  do qual    aos borbotões versos são dotados de  ênfase poética e terminações sonoras. Seus  cem sonetos,  encadeados  com incandescente ternura,   pulsam sentimentos e nervos   no discurso de  fôlego, que diz  à vontade  do amor e  dor, da alegria e  tristeza,  do sonho navegado  e ferimento do perseguido, da linguagem com cheiro de povo  e  pura emoção, enfim,  do encantamento no coração ardoroso, envolvido sempre por gestos  fraternos  na  aventura da vida.
O eu do poeta Piligra  não está imune a essa mágica experiência do soneto com seus modos líricos,   que se manifestam em ritmo febricitante,  impulsionando o relato na linguagem específica para dizer, intenso, do mundo vivenciado pelo  renomado escritor Jorge Amado.  E, mesmo que críticos formalistas achem que o  poemário  que veicula os episódios e cenas de uma biografia não tem muita validade, tal a fragilidade na composição mista de sua estrutura,  na qual o autor fantasia  um discurso  informativo, que já encontrou antes  com o conteúdo pronto, resultando o objeto verbal da recriação da realidade em um produto híbrido, que não é nem biografia, nem poesia legítima;  como também acontece  na prosa com a biografia romanceada,  cujo discurso procura  fundamentar-se com motivações de um lastro encontrado perfeito e acabado, não se pode deixar de considerar que A odisséia de Jorge Amado reveste-se de uma base imaginativa  que transcende do texto, além do real circunstante.  Desgarra-se do produto híbrido literário, com seus clarões  atinge o que em si mesmo reverbera,  graças à competência e sensibilidade  do  autor da novidade, de sua habilidade para retirar os fatos  do real objetivo  e transfigurá-los como um outro mundo, trazido ao presente para junto dos nossos olhos.  
Vejamos esse exemplo na página 69:

Lua vermelha, sangue bonito sobre a terra,
Negro presságio se anuncia a toda gente,
Quem busca glória e quer dinheiro, medo sente:
Jagunço esperto o tiro certo jamais erra...
Vem lá das “Terras do Sem Fim” cada semente
D’ouro que mata, que maltrata e que desterra,
Na noite escura o filho chora o pai que enterra:
O coronel sabe da morte e ri contente...
Na negra mata tudo é sombra, medo e dor,
Desejo louco de abraçar toda a riqueza,
Cega ambição no dedo frio do atirador,
Bala sem alma produzindo a vil tristeza...
- O velho Juca Badaró planta o terror
Entre os “grileiros” que já vivem na pobreza...

Ou nesse outro exemplo  da página 97:

“Jardim de Inverno”  ganha forma e consistência,
A dor do exílio toma conta do escritor,
Zélia registra o tempo triste e a violência:
Estar distante do País lhe causa dor...
O mundo é visto pela voz da resistência
De quem se mostra mais valente ou lutador;
A velha Europa se transveste de aparência,
Mulher da vida sem futuro promissor...
“Cantos modernos de canhões surgem do nada;
A terra treme, geme, sofre de agonia,
A dor do mando sempre é coisa encomendada,
Uma  outra guerra ganha espaço à luz dos dias...”
- “Jardim de Inverno”, tradução desesperada,
Texto que faz da dor sofrida,  poesia...”

Os versos dos dois sonetos referidos mostram como  o poema pode surgir  da linguagem veemente, em sintonia com a figuração fácil,  e ser capaz  de fazer de tudo o acontecimento, inovando na própria índole do soneto com um ritmo ágil , que fornece  ao leitor os tons naturais  para uma boa escuta  e ao mesmo tempo um aprendizado útil sobre o que lhe é transmitido.  Não importa que seus elementos de composição emanem de  unidade poética com o feitio híbrido,  minimizado  pelos críticos e teóricos formalistas. Explicam tais versos que foi sonhando e acreditando que o poeta Piligra experimentou o soneto em vasto campo de celebração,  impregnando-o de sentimentos e emoções, sonoridades e sentidos, intuições e visibilidades,   numa curiosa extração de eventos e mensagens,  motivada  pelos gestos solidários de uma vida de criatura rara.
   O  poeta Piligra juntou assim os meios de diferentes composições poéticas,  mesclando  a forma fixa do soneto, de espaço operacional breve, com a manifestação rítmica  do cordel, sempre espontânea, agradável à escuta e leitura,  no intuito de  evidenciar  o trajeto notável  do escritor  que deu voz aos excluídos, quis a vida com mãos nas mãos para que se tornasse viável,  fosse acesa  com as chamas do amor e repercutisse perante a existência com as vozes da  liberdade.  E o poeta, que fundou a odisséia protagonizada pelo Ulisses nascido nas terras do cacau, amado cidadão do mundo,  tornou-se  prazeroso do verso com essa sacada. 


·        PILIGRA. Odisseia de Jorge Amado, EDITUS, Editora da UESC, Ilhéus, 2015.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017



Editora Aracne da Itália publica
Livro de Poesia de  Cyro de Mattos



           “Poesie Brasiliene della Bahía” - Poesia Brasileira da Bahia -  é o livro de poemas do escritor e acadêmico  Cyro de Mattos,   publicado no início deste mês  pela  Aracne Editora, http://www.aracneeditrice.it, de Roma, Itália, com tradução de Mirella Abriani e desenho da capa de Ângelo Roberto. Com  “Poesie Brasiliene della Bahía”, o autor Cyro de Mattos alcança a marca de onze  livros  publicados por várias editoras na Europa: quatro em Portugal,  quatro na Itália, um na França, um na Alemanha e um na Espanha.  Além disso, o escritor tem contos e poemas publicados em Portugal, Itália, França, Rússia, Espanha, Estados Unidos, Dinamarca e México
Vale a pena ressaltar que, na ocasião em que o poeta baiano  recebeu o Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d`Oro, em Genova, Itália, a presidente do júri, professora doutora Graziela Corsinovi, da Universidade de Genova,  ressaltou que a poesia de Cyro de Mattos é dotada de “ amplo horizonte histórico e existencial, articulada em lúcido espaço lírico, em que evoca o mistério e a epopeia brasileira com grandes camadas sugestivas.”

A editora Aracne é uma das mais prestigiosas da Europa. Foi criada em 1993 e mantém um canal de TV para divulgar suas atividades no mundo dos livros, através de congressos, reuniões, encontros, seminários,  entrevistas, feiras, salões, etc.  Publica livros científicos e didática universitária, de economia, política, direito, literatura e arte.  Ao longo de mais de vinte anos, já publicou mais de  15 mil livros. Clique no link http://www.aracneeditrice.it/aracneweb/index.php/pubblicazione.html?item=9788825502626