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segunda-feira, 22 de maio de 2017

                    


                    Dois Irmãos
                  
                     Cyro de Mattos
     
        Os  irmãos Josias e Josevandro  nasceram  num lugar qualquer desta terra,  numa hora qualquer, num ano qualquer. Cresceram juntos. Eram  muito  unidos e se gostavam. Dormiam juntos. Quando amanhecia, cedo iam procurar os pássaros, escutar seus cantos alegres. Paravam no caminho  para ver a beleza das flores. Nadavam, mergulhavam, pescavam  nas águas doces e puras do rio. Sorriam de pura alegria quando  pegavam um peixe grande na rede.
     Quando ficaram grandes, cada irmão procurou ser na vida o que lhe pareceu a melhor atividade  para sobreviver  com dignidade. Josias   tornou-se pastor de ovelhas,  Josevandro  foi ser agricultor.
       Josias viu seu rebanho de ovelhas prosperar a cada ano, já pensando em  ser um criador de gado, um dia. Dava de presente ao pai uma ovelha no final do ano.  Josevandro não prosperava nas lavouras que plantara de milho e feijão. Ora a chuva pesada e continuada estragava tudo, ora a praga  não deixava nada. Percebeu que o pai e a mãe gostavam mais do irmão. Começou a ter ciúme de Josias.
      Josias tocava a flauta de bambu para os carneiros e as ovelhas, que serenas comiam o capim verde do pasto. Josevandro irritava-se com os parasitas e as ervas que se intrometiam no plantio causando estragos. Esbravejava, xingava nomes pavorosos, revoltava-se contra Deus, que não era justo com ele, só beneficiava o irmão.
         Certa vez Josevandro chamou Josias para uma pescaria, o que já não faziam  juntos  há alguns  anos. Era  como se de repente procurassem viver separados, cada um tomando seu rumo no campo. Cada um se encarregando da atividade escolhida para que sobrevivesse no esforço dos dias.
         De repente Josevandro pegou a pedra grande e bateu com força na cabeça  do irmão. O sangue jorrou forte e manchou as águas rasas do rio. Josevandro  jogou o corpo de Josias no rio com uma pedra amarrada no pescoço.  O corpo desceu e ficou lá no fundo do poço.
         Josevandro contou aos pais que Josias tinha morrido afogado. Mergulhou várias vezes tentando  achar o corpo do irmão, mas  não  conseguiu.
      O pai descobriu que Josevandro estava mentindo. Depois de várias tentativas, já pensando em desistir,  descobriu o corpo do filho com uma pedra amarrada no pescoço no fundo do poço. 
     Josevandro foi expulso de casa pelo pai.
    A mãe soube que  com a morte de Josias  havia perdido seu  único filho.
      Até hoje Josevandro rola pelo mundo, em busca de uma paz que lhe devolva o sono, depois de um dia duro de trabalho.
       .

         
 
         











terça-feira, 16 de maio de 2017

                                



                                     Mãe e Filho
                              
                                  Cyro de Mattos
             
           Nada era pior do que saber  que a mãe não  voltaria mais a andar. Ficava prostrada na cama, a doença arrancando-lhe o sorriso do rosto na pele sem cor. O momento de alívio era quando conseguia reconciliar o sono. Na rotina do medicamento, a  agulha furava a veia do pulso, por onde o soro era levado para reforçar o sangue enfraquecido no sistema de defesa do corpo.  O  irmão trazia para junto da cama o suporte de aço  quadripé com rodízios,  o soro no tubo pendurado no gancho, descia lentamente pela mangueira, gota a gota, seguindo para penetrar no corpo da mãe. O tempo enfadonho se repetia no corpo abatido, lambia os minutos demorados no quarto.   
        A moça que cuidava da mãe mudava seu corpo com cuidado para o outro lado. Limpava as feridas com algodão embebido na água oxigenada. Tentava atenuar as dores nas costas por ter o corpo permanecido tanto tempo na mesma posição. A mãe acordava gemendo, as costas queimando, os olhos umedecidos.
        Tentava consolá-la, não perdesse a fé em Deus, todos nós estávamos  esperançosos de que um dia ela voltasse a  andar com as suas pernas incansáveis,  os passos seguros, dando vida ao corpo.  Os dias voltariam ao ritmo  normal, sua voz esbanjando afeto pelo apartamento, de suas mãos,  até certo ponto divinas,   chegariam até à mesa  as comidas deliciosas para os filhos, doces e bolos com confeito,  como  ela gostava de fazer. 
         Como não lembrar os ensinamentos que na infância a mãe tanto lhe dera?
      “ Menino, já para dentro   Que vem o vento ventoso   Levado, levando cisco! Menino, já para  dentro! Boa romaria faz quem em sua casa está em paz. E essas  adivinhas: O que é,  o que é, o ano todo no deserto o mais quente é.  Responda certo, menino esperto. Como esquecer essa de pura carícia: Da noite o beijo. A melhor sombra de dia. Quem é? A  casa era pequena, mas em tudo os dias tinham  tuas mãos zelosas.  Colocavas nos vasos aquelas  rosas, como sonho na manhã perfumando esbanjavam pelos ares  ternura. Davam vida à máquina de costura tuas pernas ativas. Os bordados, beleza tecida,  sempre admirados por quem visse. Como o mundo de Deus era grandão. Dizias que  primeiro a obrigação, depois,  filho, é que vem a diversão.”
           Nada era pior do que saber  que a mãe não  voltaria mais a andar.  O tempo usurpava sem dó a beleza dela,  não havia revolta enquanto durava a agonia. O amor por ela dobrava porque o filho sabia disso.

  

sexta-feira, 12 de maio de 2017

          

         Devoção da Virgem Maria
          
                         Cyro de Mattos

          A imagem da Virgem Maria era guardada no nicho de cedro. Permanecia no altar, embaixo de Jesus crucificado. A mãe forrava o pequeno  altar  com um pano de linho branco. Havia no oratório  jarros com flores, velas nos castiçais, eram acesas quando a mãe ia fazer suas orações.
       A mãe organizava a  pequena procissão, ela conduzia à frente a imagem da Virgem Maria, as outras mães seguiam  formando duas filas nas laterais da rua,  uma de cada lado, no meio as crianças levavam flores nos braços. As velas acesas, os cânticos e as rezas pela rua. A procissão saía da casa  onde a mãe morava e terminava em outra, que podia estar localizada na rua de cima. Ali, a imagem da Virgem Maria era entregue à dona da casa, que estava pagando uma promessa. O filho havia sido lembrado pela santa, fora salvo de uma doença que atacou o fígado da criança, já estava desenganada pelos médicos. A mãe em desespero não sabia mais o que fazer. Rogou à Virgem Maria pela salvação do filho e fez a promessa. Obteve a graça.
       Os rostos contritos, as rezas e os cânticos  na rua por onde  passava a pequena procissão, atraindo pessoas, que apareciam no batente das portas ou vinham até  as janelas.

                 Ave, ave, ave, Maria!
                 Ave, ave, ave, Maria!
               
                Aos treze de maio
                Na Cova da Iria
                Aos três pastorinhos 
               Apareceu a Virgem Maria.

               Ave, ave, ave,  Maria!
                Ave, ave, ave,  Maria!

      Soltavam fogos coloridos, adrianinos e foguetes  quando  a  imagem da Virgem Maria era entregue pela mãe à dona da casa, que havia  alcançado a graça  e estava pagando a promessa.  A imagem da Virgem Santa permanecia nove dias na casa da dona casa, quando então era rezado à noite o terço  com as filhas de Maria. Quando a imagem da santa regressava  para a sua casa de origem, a mãe vinha recebê-la na porta. Rezava-se o terço. No final da reza soltavam-se de novo fogos coloridos.
       Com os corações contritos, terminada a reza, os que participavam da devoção à Virgem Maria regressavam  às suas casas. No outro dia a imagem da Santa era guardada no nicho. Era assim que, na cidade de vinte mil habitantes, a mãe e outras mães demonstravam o seu amor e a sua fé por Nossa Senhora. Todos os anos.  


*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Pertence às Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Publicado em inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês e russo. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

terça-feira, 9 de maio de 2017

                 
                  Eduardo Portella: Pensador da Cultura
                                                      
                                       Cyro de Mattos
  
          Eduardo Portella  era um desses intelectuais atuantes que argumentava com lucidez sobre assuntos de nossas letras e cultura. Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro,  lecionou até os últimos dias de vida. Ministro da Educação no  governo do Presidente João Figueiredo, lutou pela anistia, foi demitido por ter  dado apoio à greve dos professores  universitários.
 Seu discurso de vida dirigiu-se para os parâmetros de um humanismo solidário com base na ordem da verdade. Foi interditado por aqueles que pensam ser suficiente para valer na dotação humana   o poder que você exerce com o cargo. Dele é a célebre frase: “Não sou ministro, estou ministro”, para afirmar com isso, no tácito entendimento da palavra enunciada, que tudo é transitório ante o eterno que fica.
.    Crítico, pesquisador, conferencista, editor, advogado e político brasileiro. Ocupou a presidência da Conferência Mundial da UNESCO. Foi   diretor das  Edições Tempo Brasileiro, divulgando Heidegger no Brasil e o Formalismo Russo de Yuri Tynianov. Membro titular da Academia Brasileira de Letras, recebido por Afrânio Coutinho.  Naquela instituição recebeu João Ubaldo Ribeiro, Lígia Fagundes Telles e  Zélia Gattai.
          Propôs um método crítico de base hermenêutica, teórica e filosófica. Sem inclinações para a interpretação da obra literária com base na inserção de autor e obra nos  períodos históricos, nem decorrente de gratuitas impressões sobre a massa do que foi escrito,   mas em função do estilo em que o autor se funda e marca sua obra  na expressividade da escrita, tanto na forma  como no conteúdo.  Esteve  à frente dos níveis usuais,  sendo o responsável pela introdução da análise estilística nas letras brasileiras. Filtrou os pressupostos, métodos  e ferramentas dos espanhóis Carlos Bousoño  e Dámaso Alonso, propondo  o julgamento como ato final na análise  literária   após a captura do fundamento  que transita  entre linguagem e uso da língua, responsável pela literariedade. Este fundamento é a visualização do entretexto.  Sua tese de doutorado foi  publicada sob o título Fundamento da Investigação Literária (1973), refundida em 1974. 
        Deixou um legado constituído de 23 obras e, entre elas, Dimensões I (1958), Dimensões II (1959), África colonos e cúmplices (1961), Literatura e realidade nacional (1963), Dimensões III (1965),  Teoria da comunicação literária (1970), Vanguarda e cultura de massa (1978) e A Sabedoria da Fábula (2011). Recebeu prêmios literários  e títulos honoríficos de muito prestígio, como Gran Cruz de la Orden del Mérito Civil, Madri (2001), Doutor Honoris-Causa, Universidade Federal da Bahia (1983), Gran-Cruz de la Orden Civil de Alfonso X, el Sabio, Madri (1980), Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, Brasília (1979).   
     Aprendi muito com ele.  Acompanhou  minha carreira literária desde o nascimento, há cinqüenta anos. Prestigiava-me. Prefaciou meu livro Cancioneiro do Cacau, que me deu  quando inédito o Prêmio Nacional  de Poesia Ribeiro Couto da União  Brasileira de Escritores (Rio) e, quando   publicado,  o Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália,  o Terceiro Prêmio Nacional de Poesia Emílio Moura da Academia Mineira de Letras e foi finalista do Jabuti.
      É dele essa observação sobre o livro:
         “ Mas o seu poema  não irrompe de qualquer abalo sísmico, ou de qualquer intempérie facilmente previsível. Ele eclode da história revigorada, nasce do fundo do homem  e das coisas, da sua raiz em curso, da origem protegida  do menor sedentarismo... Cyro de Mattos se compraz em revalorizar a raiz, e reverenciar a origem, em reconhecer  o fundamento   radicalmente imune  ao fundamentalismo. O poeta enraizado e, no caso, porque enraizado, generoso, recorda para a frente.  Como quem retira dos filtros do passado,  e dos detectores de metais do presente, lições,  mesmo que enviesadas, para a construção do amanhã.” 
         Que melhor prêmio poderia receber autor e obra do que essa opinião do enorme ensaísta? Humanista, leal, elegante, sóbrio, companheiro, intelectual de primeira grandeza. A última vez que estive com ele, na Academia Brasileira de Letras, quando fui proferir  palestra sobre os mares trágicos de Adonias Filho, disse-me que estava escrevendo um livro sobre Adonias Filho e outro sobre Jorge Amado.                
         Baiano de Salvador,  nascido em 8 de outubro de 1932, Eduardo Portella passou desse plano terrestre para outra dimensão no  dia 2 de maio deste ano.


segunda-feira, 1 de maio de 2017



II FESTIVAL LITERÁRIO DE ILHÉUS (26.04.2017)

Palestra de Florisvaldo Mattos


Nesta navegação de longo curso para uns e curto para outros, que é o ato de publicar livros, acabo de lançar o meu oitavo livro de poesia, portando 97 inéditas elocuções de fundo lírico e outras tinturas que namoram afoitamente o épico. Embora a idade não me justifique, sou de publicar livros minimamente, quase esporádicos. Depois de Poesia Reunida e Inéditos, em 2011, e Sonetos elementais, em 2012, resolvi invocar novamente a paciência dos meus raros leitores com novo volume de versos, intitulado Estuário dos dias e outros poemas, fruto dessa longa, porém magra aventura editorial.

Há poucos meses, postando eu alguns inéditos na internet, o poeta Antônio Brasileiro, um dos astros da geração posterior à minha, externando a cordialidade e a generosidade que lhe favorece o recanto bucólico onde vive, em Feira de Santana, sua pátria sertaneja, dizia-se surpreso de meu desígnio em não me afastar por completo da poesia.

        - “Oitentão que é, isso é mais que admirável” - espantava-se ele.

Perdoando-lhe o excesso, curvei-me, sensibilizado, diante da bem-humorada gentileza, ao ver ali quase repetir-se atitude benigna de Jorge Amado, 61 anos antes, quando publiquei Reverdor, meu primeiro livro, ao confessar, em comentário lido durante sessão da Academia Brasileira de Letras, quão contente se sentira com a descoberta, segundo ele, de um poeta e uma poesia, num tempo “de tanta facilidade e tamanho engano de rapazes tão sem verdade e sem força de criar”.

Não sei se o futuro absolveu a opinião do grande romancista, para muita honra meu conterrâneo grapiúna. A sorte fora lançada.
Ao longo da vida, tenho sido mesmo um tanto avaro em publicar, tanto quanto em escrever literatura. Se cuidadoso na poesia, ainda mais o fui em relação a outros gêneros literários, pois, em prosa, só escrevi e publiquei um conto e uma peça de teatro, esta levada em 1974, no Teatro Vila Velha, em Salvador, pelo saudoso diretor Sóstrates Gentil, versando um tema alojado justamente na remota atmosfera de lutas de coronéis e jagunços em terras do cacau. Abri uma exceção, assim mesmo parca, apenas para a ensaística em literatura, arte e questões sociais.

Ultimamente, tenho me fixado mais na poesia, e em leituras e releituras do que me agrada. Ao longo do tempo, fui para com ela um tanto adúltero, escudado e insuflado por duas razões básicas: a primeira teve como marca indevassável o grau de autocrítica de que desde jovem me tomei, diante da ânsia de escrever o que pensava e sentia. Repetindo o argentino Jorge Luís Borges, creio que a poesia e o poema se apresentam ao poeta e ao mundo como uma forma de magia. Como ambos dependem da linguagem, casam-se pensamento e imagem por meio da palavra para alcançar a emoção, que é, por fim, o que aguarda o leitor, sem que com isso se despreze a forma.

Dizia Ezra Pound que a técnica é a prova da sinceridade de um poeta. Concordando com ele, tenho para mim que sinceridade e qualidade se completam no fazer poético.

A outra razão que me pôs a poesia em plano secundário foi o absorvente mergulho de 53 anos no exercício cônscio e fiel do jornalismo profissional, desde que, no mesmo dia da solene formatura em Direito, frustrando os sonhos de meu saudoso pai, um denodado comerciante que exercia seu oficio no fundo de matas e roças de Itacaré, eu já compunha a redação de um novo jornal, que surgira em Salvador, o Jornal da Bahia, optando por ser jornalista, como uma fatalidade, para toda a vida.

Por fidelidade a uma profissão, optei por ser, assim, durante anos, em matéria de poesia e literatura, embora persistente leitor, um quase criador secreto, desses que levam a vida esmerando-se em guardar o que escrevem, elegendo uma gaveta como o seu mais paciente e fidedigno leitor, ou como outros que se conformam, resignadamente, em publicar um único livro em vida, como foi o caso de um de nossos maiores poetas, nascido em Belmonte, mas por muitas décadas vivendo em Ilhéus, o saudoso Sosígenes Costa. Pronuncio esse nome e me vejo compelido a abrir um parêntese, para evocar e registrar quão proveitosa foi para mim, ainda jovem, a relação de admiração, aprendizagem e amizade que travei com Sosígenes Costa, nesta cidade, que, para ele, brilhava “qual grande búfalo fosfóreo”.

Completado o curso de ginásio, vinha eu de Itabuna, para atender a duas imposições do momento: prosseguir nos estudos e cumprir o serviço militar obrigatório. Foi quando, já escrevendo e publicando poemas, em jornais, mas de fundamento romântico e rabiscos parnasianos, colegas e amigos me advertiram da existência em Ilhéus de um dos maiores poetas da Bahia e, logo, me emprestaram uma antologia de poesia baiana, editada no bojo das comemorações do quarto centenário de fundação da Cidade da Bahia, que trazia poemas dele. Lendo-o, fiquei curioso e empolgado e, logo, também, ansioso por conhecê-lo.

Quero aqui apenas relembrar o que foram essas amenas tardes de frequência na plácida sala de trabalho de Sosígenes Costa, como secretário da Associação Comercial de Ilhéus, abrindo-me os horizontes não só para outras esferas da poesia nacional, especialmente o modernismo, como para a poesia em si, e quanto disso dependeram as minhas opções futuras, dele auferindo um rico e vasto cabedal de experiência e saber que me chegava por meio de lúcidas palavras.

Esses momentos de tranquila conversação com o bardo de Belmonte foram resumidos em um capítulo de meu livro Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, publicado em 2004. A título de reminiscência, aqui transcrevo parte dessa convivência, mostrando fielmente o que significou para mim dialogar com um grande poeta em carne e osso.

“Tímido, penetrava eu naquele edifício de sóbria arquitetura e arremedos neoclássicos da veneranda Praça Eustáquio Bastos, para visita-lo, e lá permanecia seguidas horas. Mostrava-lhe poemas que escrevera ou publicara no Diário da Tarde, onde me acolhia a generosidade quase paternal do jornalista Octávio Moura, então diretor do órgão que ajudou a construir e propagar o prestígio da região do cacau. Ouvia seus comentários, suas ponderações, transmitindo-me conhecimento da arte da poesia e, principalmente, fazendo-me perceber maneiras de como melhor trabalhar com o verso.”

“Alto, aprumado e hígido, sempre de terno e gravata, em sua poltrona, tranquilo e reservado, nessas ocasiões, Sosígenes mais parecia um sacerdote em trajes profanos, a discorrer pausadamente sobre literatura e poesia. Por uma janela, à minha esquerda, o frescor da brisa que vinha do mar em direção à praça invadia a sala, com os perfumes de um pequeno jardim, onde eu supunha cultivasse ele as rosas, os crótons e os antúrios que minha vista alcançava.”

"De quando em vez, animado pelo clima da conversa, meu interlocutor abaixava-se, abria uma gaveta à direita de sua escrivaninha e de lá arrancava maços de papel amarelecido e gasta datilografia, alguns em manuscrito, e lia belos sonetos, todos àquela altura inteiramente inéditos em livro, embora andasse o poeta beirando, em 1951, já então os 50 anos. E, com alento, completava a leitura, levantando-se e dirigindo-se à biblioteca que organizara para a entidade, mas, no fundo, sempre supus, para si próprio, e de lá vinha sobraçando dois ou três livros de arte ou história da arte, em cujas páginas se detinha, comentando reproduções de obras de artistas de diferentes estilos, escolas e épocas.”

“Perplexo e enlevado, com os poemas que ouvia e lia, em manuscritos ou datilografados, auferindo sua linguagem e força imagética, e, também, com os livros de arte, cujo conteúdo e aparência eram para mim novidade. Apreciava e dali saía convencido dos rumos que deveria seguir doravante, em matéria de poesia e literatura, bem diversos das oportunidades de leitura e estudo, que, até bem pouco tempo antes, tivera, a apenas trinta quilômetros de distância, na cidade de Itabuna, de prósperos comércio e vida rural, porém de quase nenhuma ilustração estética. Afora o esporte, presidindo ao princípio domens sana in corpore sano, a arte deveria ser algo estranho àquelas plagas de hábitos e costumes ainda rústicos.”

Aproveito para ler aqui um dos poemas dele, que constavam da antologia, justamente um dos emblemas de sua lavra poética, com a reiteração de versos, que é uma das marcas de sua criatividade, sem em nada prejudicar a expressão lírica, segundo o crítico José Paulo Paes, que editou sua obra completa, postumamente.

CREPÚSCULO DE MIRRA

Sosígenes Costa (1901-1968)

A tarde fecha a cintilante umbela.
Vêm os aromas como uma grinalda
ornar a sombra arroxeada e bela
e ungir os nossos sonhos de esmeralda.

Nuvens de mirra e oriental canela
formam na sombra a singular grinalda.
A tarde fecha a cintilante umbela
e o vento as asas do dragão desfralda.

A própria lua vem lançando aroma.
Nasce vermelha como a flor de um cardo
e sobre a mirra dos vergéis assoma.

E a noite chega no seu grifo pardo,
cheirando a incenso como o rei de Roma
e como Herodes recendendo a nardo.

(1927)

Após as obrigações de estudo e serviço militar, parti para Salvador com a mente prenhe de novas ideias e aspirações, e o corpo tomado de ânimos. E foi quando, após algum tempo, já na universidade, me engajei nas aspirações estéticas e vivenciais do grupo que iria depois chamar-se Geração Mapa, publicando poemas inicialmente na então aclamada revista Ângulos, produto das lucubrações estéticas do que restava do movimento Caderno da Bahia (1948-1955), que vigorara na década anterior, e também em jornais.

Esse movimento, cujo nome advinha da revista intitulada Mapa, que passou a editar, tinha como proposta básica consolidar o que não conseguira a geração anterior, que era, além de romper com a inércia cultural, cevada na renitência do conservadorismo, varrer, de uma vez por todas, o bolodório e o preconceito vigente contra a arte moderna, tendo como baliza a nova realidade nacional e internacional, defrontada com o esmaecimento dos reflexos do pós-guerra mundial e surgimento de um novo patamar na condução dos conflitos entre países. O mundo se pautava agora pela Guerra Fria, no confronto entre Estados Unidos e União Soviética.

Diferentemente de movimentos anteriores, o grupo de Mapa se abria também, sob a liderança de Glauber Rocha, para outras amplitudes, pois, além de poesia, literatura, artes plásticas e jornalismo, cultivava outras linguagens artísticas, como cinema, teatro, dança, editoração e arquitetura, e com esse fôlego firmou-se no cenário cultural baiano, mergulhando, com ações, criações e posturas, na caudal impelida pelas reformas que a administração do reitor Edgar Santos, então, fins dos anos 50, inícios dos 60, imprimia na Universidade da Bahia, possuindo contornos de uma verdadeira revolução cultural.

Atuando em várias frentes, além da revista Mapa, o grupo criou seu próprio selo editorial, as Edições Macunaíma, que publicava livros, álbuns e plaquetas;  fundou uma companhia cinematográfica, a Iemanjá Filmes, que abriria caminho ao movimento do Cinema Novo, projetando-o nacionalmente, em ousado e fecundo processo que desaguaria na realização de filmes paradigmáticos, como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, já antes autor do longa Barravento e do curta O Pátio; assim como outras realizações de destaque neste segmento cultural, entre as quais o documentário Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, que escreveu também uma peça de teatro, Evangelho de Couro, versando sobre a tragédia de Canudos, marco e exemplo do apoio e incentivo do grupo ao pioneirismo vitorioso da Escola de Teatro da Universidade da Bahia. No campo das artes plásticas, organizou exposições de pintura, escultura e gravura, não só de seus próprios artistas, como de outros, contribuindo para o incremento não só do mercado de arte como para o surgimento de várias galerias de arte em Salvador.

Hoje, confesso sentir imenso orgulho por pertencer a esta geração, cujo início de atividades dentro da cena cultural baiana completa redondos sessenta anos, neste 2017, com os espetáculos de poesia teatralizada levados no auditório do Colégio da Bahia, as chamadas Jogralescas, que açularam os ânimos, tanto de progressistas, como também os de espíritos ainda presos a um passado, que desejavam jamais devesse passar.

Direi algumas palavras sobre esta minha magra trajetória editorial.
Meu primeiro livro, Reverdor, publicado em 1965, por incentivo e empenho de companheiros de geração compreendia uma coletânea de poemas em que eu advertia de entrada que tinham sido reunidos para publicação, “tendo em vista uma unidade temática de base agrária”, querendo com isso transmitir a ideia de que a poesia deveria se distanciar das angústias, tormentos e atribulações urbanas, buscando purificar-se com o que emanava da vida rural e atividades agrárias. Estava imbuído da ideia de que a vida urbana começava então a ser fonte de perturbações mentais, mais apropriadas ao tratamento psicanalítico. As palavras deveriam transmitir um estado de pureza na formulação do poema. Com isso, deixei de fora poemas de produção anterior, que só iriam aparecer como parte de um terceiro livro, sob o título de Noticiário da aurora.
Leio um poema deste primeiro livro.

A CABRA

Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –

teu pelo residência da ternura
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

(1965)

No segundo livro, Fábula civil, de 1975, opera-se um salto, impulsionado pelo cenário de trevas e opressão que se estabelecera no país, sob o guante da ditadura, instalada em 1964. Não havia então outra saída. Espelho de uma realidade pulsante, mas embebida no martírio, a poesia irá refletir o que a censura permitiria perceber-se, pela voz da mídia e pelo trânsito dos assombros, projetado eficazmente no espaço urbano, prevalecendo uma entonação entre o dramático e o épico, mas sem perder de vista a pulsão lírica, em versos medidos e formas fixas. E, como em todos esses casos, a construção poética se funda mais no alusivo do que no descritivo, num jogo de equivalências intuitivas, por se tornar o poeta uma soma das contingências em que se misturam o tempo, a terra e as gentes.
Leio o poema que inicia Fábula civil.

CLARO
           
Pelas tardes de fogo homens
pedras movem com capacetes
de sombra mergulhados
em ruas de verão e sal.

Nada me diz que as coisas
se passam como me dizem
além
da parede de vidro que nos divide
aquém
das algemas de sono que nos unem.

Sou como posso fiel
a meu projeto mesmo
que de pronto não o achem
meus olhos – anônimos
minhas mãos – rachadas
meus lábios – rebeldes

nos espaços burocráticos
nas relações de amizade
nos desertos duros da fome.

Liberdade é meu ser
e tempo. É o meu nome.
Razão – o meu sobrenome.

(1975)


O terceiro livro, A caligrafia do soluço e poesia anterior, só aparecerá quase 20 anos depois, em 1996, sem perder de vista a memória de tempos sombrios e as experiências amargas, mas com a inclusão de poemas publicados anteriormente que lhe conferiam uma atmosfera de animação e esperança.

Mares anoitecidos, meu quarto livro de versos, cuja publicação em 2000 integrou a série de iniciativas editoriais voltadas para os 500 anos do Descobrimento, reúne poemas de conotação dramática e histórica, centrados no princípio de inspiração clássica de que há mais poesia na história dos vencidos, isto é, na tessitura de um malogro, do que nas alegrias e fosforescências dos vencedores. Então, preferi ver o episódio que marcou dramaticamente a história da Bahia, nos anos 1624 e 1625, mais pelos olhos dos derrotados e expulsos holandeses que dos vitoriosos portugueses, situação que, a meu ver, na época, não apresentava diferença, desde que os portugueses, antes, tinham sido também invasores da chamada Terra Brazilis.
Leio um poema de Mares Anoitecidos.

ROCHEDOS

Meu coração agora te pertence
lua que vaga sobre esses rochedos,
eles mesmos reflexos de longínquos
muros, agora esfinges a espreitar
distâncias, a arrimar arquitetura
nostálgica de cercos, a exumar
brasão latino ou artifício mouro.
Meu coração agora vos pertence,
graves rochedos, arsenal de fúrias,
que são artes do tempo, vosso algoz:
em quieta hora da tarde ou noite morna,
decreto imemorial que a espuma lavra,
a ruína e morte, e a solidão, alude
o som da água que ruge a vossos pés.

(2000)

Em 2001, publiquei uma antologia intitulada Galope amarelo e novos poemas, para em 2011 dar a público Poesia Reunida e Inéditos, em volume de quase 400 páginas, a que se seguiu o de Sonetos elementais – Uma antologia, em 2012, e, por fim, agora, Estuário dos dias e outros poemas.

Creio que devo referir-me um pouco a esses meus exercícios de magia verbal. Sempre escrevi poesia, além das cogitações que me são próprias, à luz de grandiosos exemplos, na presunção de que, manejando com palavras, o poeta não pode dispensar o som e o ritmo, que lhes são próprios; e por isso ainda vejo como não superada a recomendação de Ezra Pound de que o poeta, além da obrigação de ir direto ao objeto cogitado, deve inundar seu enunciado de palavras carregadas de significado, eliminando todo e qualquer elemento supérfluo, sem descuidar-se da cadência musical. Isto é, para mim, a ressonância de advertência contida em verso famoso do francês Verlaine, - “de la musique avant toute chose” (“a música antes de tudo”). Dentro dessa moldura, ouso defender que a elocução em poesia é basicamente rítmica, com uma inclinação para o musical, no encadeamento e na entonação das palavras.

Em relação a meu último livro, Estuário dos dias e outros poemas, constituído em grande parte de poemas lavrados em versos decassílabos, gostaria de transcrever palavras da apresentação, que lhe fiz, em muito justificadoras de meu processo criativo, que consiste em escrever versos sempre levando em conta o som e o ritmo das palavras.

“Embora possa a muitos parecer uma excentricidade ou, talvez, uma nostalgia de abominado rastro parnasiano-simbolista, considero-o uma espécie de tributo à forma, pois alimento intimamente a convicção de que, originário da Itália, foi o verso decassílabo que civilizou a poesia, não apenas a portuguesa ou a hispânica, mas ocidental. Dentro do universo lusófono, este verso possui extraordinária longevidade, desde o momento em que Sá de Miranda, numa época de sagas cavalheirescas, voltando de uma temporada na Itália (1521-1526), introduziu a forma do soneto em Portugal e trouxe o decassílabo como seu leal escudeiro.”

A esse respeito, subscrevo o que diz o excelente jornalista e ensaísta João Carlos Teixeira Gomes, meu companheiro de geração e confrade na Academia de Letras de Bahia, por sinal, também poeta e exemplar sonetista, que classifica, em recente livro, este consagrado verso como “um operador poético poderoso”, pelo tanto que possui de “harmonioso e melódico”. E assim o justifica: “No restrito espaço das dez sílabas, o decassílabo se expande na direção de um universo de modulações rítmicas e melódicas que parecem infindáveis”.

No encerramento desta minha fala, quero ler um poema ainda inédito, que, no fundo, é o modo com que procuro me redimir de, tendo escrito poemas de fundo memorialístico em homenagem a Uruçuca e a Itabuna, jamais ter escrito um que reverenciasse a cidade de Ilhéus, onde vivi e tive momentos de alegria e felicidade juvenil. Pode parecer um chiste, mas o fato é que, lendo eu um poema de Ruy Espinheira Filho, deparei-me com uma estrofe em que ele invocava a sua memória juvenil, lamentando nunca ter ido à praia, nem tampouco visto o mar. Tão íntima confissão me tocou e, então, escrevi um poema celebrando o momento em que Ilhéus me proporcionou ver pela primeira vez o mar, aos 12 anos de idade.
Ei-lo, construído em sétimas e versos de sete sílabas.

A DESCOBERTA DO MAR

                                     Não, não íamos à praia.
                                    (...)
                                    Pois é, também não víamos o mar
                                    E as lagoas não compensavam.
                                                           (Ruy Espinheira Filho)

Eu também não via o mar.
Via o ribeirão e o brejo.
Vi depois um manso rio,
Onde aprendi a nadar.
Sonhava noites a fio.
No fundo havia o desejo
De sair e ver o mar.

Foi graças ao trem-de-ferro,
Que um dia parou na praça,
Com intenção de me lançar
Por um caminho sem erro,
E me levou para o mar.
Até me dava de graça
O contrário de um desterro.

Falam mais alto o meu sonho
E toda a minha alegria,
Com gosto de navegar.
Levei um susto medonho,
Tamanho mesmo do mar;
Com cores de epifania,
Era maior que o meu sonho.

Meu pai levou-me a um bar,
Que não comporta miçanga
(Ardente nome: Vesúvio!),
Um éden diante do mar.
Corre pelo ar um eflúvio,
Traço um sorvete de manga,
Satisfaz-me o bom-mirar.

Vastidão de azul e verde,
A se perder no horizonte,
No rastro de branca espuma!
Quanta alegria em se ver
De longe o quanto se esfuma,
Qual doce correr de fonte!
Na vida quanto se perde...

Um dia escrevi louronda,
Palavra de amor concreto,
Em folha depois sumida,
Na esteira de doida onda.
Uma lição para a vida:
Hoje sei em que dialeto
Um dia escrevi louronda.

Água, terra, fogo e ar,
Trouxe ao menino a ciência,
E muito mais. Quando busco
Uma rima para mar,
Seja aurora ou lusco-fusco,
Cá me diz a experiência:
Não há melhor do que bar.