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domingo, 16 de abril de 2017

                    



                         Páscoa
                       
Cyro de Mattos
      
Pai salvador,
Misericordioso,
Toca no meu peito
O sofrimento teu.
               
 Fadiga, sede, fome.
 Cuspe, espinho, sangue,
Chicotada, prego, 
Madeira feita cruz.

Meu Pai,  perdoai
Os pecados meus. 
Não sei o que faço
Com tanta rejeição.

Vinde clarear  
Meus cegos passos
 Amarrados sempre
Nesses ímpios nós. 

Sei que não mereço
Um grão dessa luz
Que ilumina o perdão
Do filho de Deus.

Ainda assim dizei
Apenas  uma palavra
Que serei um pássaro
Solto da garganta.

 O bico desfiando
A divina experiência
Sem os cravos da dor

Que Te  ofendeu.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

                          


                         Semana Santa

                     Cyro de Mattos


Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite,  a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe  soubesse. Ela dizia que as  pessoas   deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana,  passava logo, ninguém ia morrer por isso.
            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe  falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca  na Sexta-Feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-Feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo  na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas  do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara  pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus  na cruz  de maneira cruel. Em vez de água, quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus,  muita gente chorava.
            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face  para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora o  cinema quase vinha abaixo com as vaias da plateia.
           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-Feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas  principais da cidade sob os cantos que falavam de pesares  e perdão:

                             Perdoai,  Senhor, por piedade,
                             Perdoai,  senhor, tanta maldade,
                             Antes morrer, antes morrer
                             Do que  Vos ofender...

            A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com o Senhor Morto,  as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da  graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido  roxo,  que tocava  os pés, os cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia  o rosto do Cristo no sudário..
            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis, calados, rostos contritos,  naquele trecho de rua em que a procissão parava.
                             
                           
                          Pai salvador,
                          Misericordioso,
                         Toca no meu peito
                        O sofrimento Teu.                  
                        Fadiga, sede,  fome.
                       Cuspe, espinho, sangue,.                   
                       Chicotada,  prego,
                       Madeira feita cruz,
                       Meu  Pai, perdoai
                       Os pecados meus.


.Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar  quando a beata Detinha teve uma crise de nervos, chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou  e pediu  que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As  botinas novas apertavam  os meus  pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “ Os calos estão doendo muito, não agüento mais”,  disse  aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
Preferi não obedecer minha mãe. Esperei que ela se ajoelhasse  com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar  dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela, desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações  e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas. Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro.  



sábado, 8 de abril de 2017

  



Descoberta de Castro Alves

                      Cyro de Mattos


Saltou do bonde na parada próxima ao Restaurante Cacique e Cine Guarani, com o firme propósito de conhecer aquele monumento de mais de dez metros, um homem lá no alto encimando o pedestal. Aquele homem de cabeleira negra e basta devia ser muito importante para que fosse homenageado em monumento tão grandioso.
 Atravessou a rua e se aproximou do monumento. O olhar curioso viu que em um dos lados estava um livro aberto  com um sabre atravessado, tendo em letras douradas os versos:  “Não cora o sabre do ombrear com o livro”. Em placa de mármore,  numa das faces da base, lia-se:  “A Bahia a Castro Alves.”
Aquela estátua de bronze  assentada no alto representava  um poeta, muito querido pelo povo baiano, estava ali na atitude de fala, de quem declamava, tendo a cabeça descoberta, fronte erguida, olhar perdido no infinito, chapéu mole de estudante à mão esquerda, braço direito estendido. De um lado da coluna, viu um grupo em bronze, representando um anjo em posição de voo, a levantar uma mulher escrava pelo braço, erguendo-a ao alto.  Viu também um casal de escravos.
Quem era esse poeta que a Bahia dedicava imenso amor? Lembrou da biblioteca da agremiação estudantil no Colégio dos Irmãos Maristas. E foi lá,  durante a semana, na hora do recreio, folheando o livro ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, que ficou conhecendo a vida e a obra daquele grande poeta.
        Era um rapaz esbelto, que vivera pouco. Nasceu na fazenda Cabaceiras, próxima a Curralinhos, na  Bahia, em  14 de março de 1847. Tinha grandes olhos vivos, maneiras que impressionavam a quem o assistisse declamando versos de amor, às flores e em solidariedade aos escravos. Causava admiração aos homens e arrebatava paixões às mulheres. Seu estilo contestador contra a situação da escravidão dos negros na Bahia o tornou conhecido como O Poeta dos Escravos. Além de abolicionista exaltado,  foi um liberal atuante, que clamava  pela instalação da República no Brasil. Teve como colega Rui Barbosa no Colégio Abílio Borges, em Salvador, e na Faculdade de Direito do Recife. Faleceu aos 6 de julho de 1847, aos 24 anos, em Salvador, vítima de tuberculose.
          Depois de conhecer um pouco  a vida do poeta romântico, interessou-se por sua poesia. Foi ler, um a um, os livros desse poeta cantor do amor, da água, das pétalas, dos negros escravos e da liberdade. Publicara em vida apenas um livro: Espumas Flutuantes, em 1870. Seus outros livros,  A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876 ,  Os Escravos, 1883,  Hinos do Equador, 1921, tiveram edição póstuma. 
     Na medida em que fazia a leitura duma  poesia cativante e libertária, ia anotando alguns versos no caderno, que lhe enriqueciam a sensibilidade.  
      Como esses:    
                              
Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! ...
          Ou esses:
                    
                       Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

       Ou ainda esses, escritos com graça e leveza:

                         Prendi meus afetos, formosa Pepita...
mas, onde?
No tempo? No espaço? Nas névoas?
Não rias...
Prendi-me num laço de fita!

       Perguntava-se como era que no coração de um poeta tão jovem como Castro Alves  cabia tanta afetividade e solidariedade aos excluídos.  Com a leitura de cada livro, sua alma foi-se impregnando da beleza e da verdade postas pelo poeta maior  em versos comoventes, escorridos com amor e talento raro, que só os gênios possuem.

      Castro Alves tornou-se em pouco tempo  um ídolo para o jovem do interior,  desses em que  a marca de uma época ou de um tema brilha com a individualidade manifestada numa espécie de criador que permanece sempre ante a vida que passa.