Páginas

quinta-feira, 26 de maio de 2016





      Sonhando Acordado



                     Cyro de Mattos




Quando era o verão, no meu tempo de menino, gostava de olhar as nuvens trafegando no céu azul. Vinham das lonjuras do mar não muito longe da cidade. Da balaustrada do jardim, observava seus movimentos vagarosos, ora  como grandes rochas brancas, ora como enormes cogumelos, ora como colchões brancos e macios.  Às vezes estendiam lençóis compridos que flutuavam acima do rio. Faziam descer do céu suas figuras esboçadas, que  ficavam sombreando o espelho das águas aqui embaixo..
Afastavam-se da cidade pela tarde em suas embarcações pesadas, provavelmente transportando gente e carga. Antes que as sombras da noite chegassem, ocultando a tarde abafada,  elas contornavam  um dos bairros populares da cidade,  situado  no outro lado do rio  com suas casas acanhadas, construídas por gente humilde nas inclinações  do morro. Lá se iam empurradas pelo vento mais alto, rumo às serras azuis que cercavam uma das partes da cidade.
Um dia vi o arco-íris descer de uma nuvem gorda acima da ilha e, lentamente,   entrar  no meio do rio. A seguir ele caminhou  com as suas sete cores e ficou limpando o lodo das águas. Depois  bebeu a  água limpa na corredeira; certamente brincou com os peixinhos ariscos no leito raso, feito de areia brilhante,  pedrinhas lisas e redondas.
            De vez em quando elas inventavam gigantes que sumiam por trás dos morros.. Desenhavam carneirinhos que subiam as ladeiras do céu. Mostravam velho de  barba e cabelos longos,  sentado no tapete  que voava. Deixavam sair de um  barco encalhado uns  bichos feios, que desapareciam rápidos. No fim da tarde ofereciam-me flores, que de repente viravam pássaros  luminosos de prata, numa mágica que somente elas sabiam fazer.
 Rendilhadas, onduladas ou achatadas, convidavam-me a viagens imaginárias pelo azul do céu. Maravilhosas travessias em que eu sobrevoava continentes, mares, quintais e jardins de outras cidades. Sentia-me, nesses momentos,  que somente eu era o  cavaleiro rico entre os meninos de minha rua. Dono de castelos, que elas me davam de graça, ninguém duvidasse disso.
            Mas não era somente da balaustrada do jardim o local em que eu ficava olhando paras as nuvens no céu límpido do verão. De  calção e peito nu, deitava-me no pátio, e,  com o rosto para o céu, demorava-me vendo elas passarem cheias de luz, em suas viagens diárias ao redor da terra. 
           Numa manhã em que o sol resvalava seus raios mornos por todos os cantos de nossa casa, o  rosto de minha mãe apareceu na janela da cozinha. Depois de me perguntar se já tinha feito os deveres da escola e  receber de mim a resposta afirmativa,  ela se mostrou  interessada em saber o que era que eu estava conversando com as nuvens daquela vez. Disse que  estava querendo saber delas se quando crescesse e me tornasse um homem poderia retornar ao mundo da infância para brincar com os meus amigos nas aventuras mais empolgantes.  Fazer essa viagem de volta, como elas que  desapareciam e apareciam por onde sempre passavam, como se o tempo fosse um só, sem que houvesse a sua passagem através dos dias, semanas e meses. Espantada com o que tinha acabado de ouvir, minha mãe,  sorridente, falou  que só existia uma maneira de se voltar ao passado distante quando a gente se torna uma pessoa adulta.
             - De que jeito? – perguntei-lhe, curioso.
             - Sonhando acordado como se o homem, que um dia você vai ser,  ainda  fosse um menino.  














quarta-feira, 25 de maio de 2016



EVENTO NACIONAL NA ITÁLIA PARA O CENTENÁRIO DE ZÉLIA GATTAI

Na Itália, o Evento Nacional para o Centenário de Zélia Gattai acontecerá segunda-feira, dia 30 de maio, às  19 horas,  Auditorium do Centro Cultural da Embaixada do Brasil em Roma, no Palazzo Pamphili de piazza Navona.  Na oportunidade será  analisada a vida e a obra da grande escritora. Junto com a Diretora  do Centro Cultural Brasil-Itália, Daniela Dornelas Cavalcanti, participarão  Luiz Felipe Czarnobai (Adido cultural da Embaixada do Brasil na Itália), Antonella Rita Roscilli (Brasilianista, tradutora, escritora e biografa de Zélia Gattai),  Germano Panettieri (Diretor  da Editora Nova Delphi), e Giorgio De Marchis (Professor de Lingua e Literatura brasileira  na Università Roma Tre). 
A seguir, teremos   o lançamento da obra de Zélia Gattai  "MEMORIALE DELL'AMORE " (ed. Nova Delphi) , pela primeira vez em versão italiana e traduzido  por A.R.Roscilli.  Está prevista a presença de Ricardo Neiva Tavares , EMBAIXADOR DO BRASIL NA ITALIA, Fabio Porta, deputado italiano,  Antonio Bernardini recém eleito EMBAIXADOR DA ITALIA NO BRASIL. 
O publico, enfim, poderá assistir a alguns trechos da minissérie "Anarquistas Graças a Deus", que nasceu da primeira obra de Zélia Gattai sobre a imigraçao italiana no Brasil e a infancia dela. Terminará com um  coquetel  e um show com  músicas  de Dorival Caymmi interpertadas pelo grupo  "Samba da Benção" (Pierpaolo Ciocia no cavaquinho e voz,  Vinicius Braz na percussão e voz, Salvio Baracho na  percussão e voz e Paulo Valentim no violão e voz

segunda-feira, 23 de maio de 2016






INICIADA A PELEJA    

                                                   Fernando Sabino                                                   



 Justamente na hora do primeiro jogo de nosso selecionado na Europa, realizava-se uma reunião da Diretoria do Banco, a que ele não poderia deixar de comparecer. Não teve dúvidas: arranjou emprestado um radiozinho transistor, com dispositivo de se adaptar ao ouvido para audições individuais, meteu-o no bolso e bateu-se para a reunião.
- Que é isto? – estranhou um dos diretores: - Você ficou surdo?
Acomodou-se junto à mesa: a reunião já havia começado e o jogo também. Didi passa para Mazzola, este para Pepe, Pepe novamente para Mazzola. Proposição de um dos diretores sobre o incremento do crédito agrícola. Escapada de Garrincha pela direita. Estamos certos de que nossos colegas aprovarão medidas que permitem a imediata normalização das operações.
- Aprovado;
- Aprovado.
- Impedimento!
- Como?
- Nada não. Aprovado.
A pelota é devolvida à circulação: os produtores não poderão obter senão um empréstimo equivalente ao valor de sua remissão que será adicionado ao montante da dívida. Falta perigosa a ser cobrada nos limites da grande área. O débito remanescente e oriundo do financiamento previsto na lei representa um perigo para a cidadela brasileira, defendida por Gilmar. A dívida será computada no ano imediatamente posterior à safra liberada. Cobrada a falta. Defesa es-pe-ta-cu-lar de Gilmar!
- A menos  que a garantia oferecida, nos termos da Portaria número quatro...
- Centra logo, homem de Deus!
Didi recebe de Belini e organiza novo ataque. Os lavradores beneficiados, quaisquer que sejam os termos da dívida assumida...
- É agora! Vai chutar.
- Perdão?
- Perdão o quê?
- Não entendi o seu aparte.
- Ah, desculpe... Pode prosseguir: foi fora.
Os termos da dívida assumida...
- O senhor está me ouvindo bem ai?
- Perfeitamente. Por quê?
- Esse seu aparelhinho no ouvido... Muito bem: prossigamos.
A reunião prosseguiu sem novidades até que Garrincha se apoderasse novamente da bola. Mazzola prepara-se para chutar... Pânico na defesa italiana.
- Gol do Brasil! - berrou ele, incontido.
Os outros diretores se voltaram, estupefatos.
Tornou a desculpar-se como pôde, acomodou-se novamente na poltrona e continuou a participar da reunião, que prosseguia agora sob estranheza geral: os lavradores, em face dos dispositivos que regulam o débito consignado no exercício anterior... Ele foi-se erguendo lentamente da poltrona, braço estendido, fisionomia aparvalhada.
- Que está acontecendo., afinal?
- Esperem, esperem – pediu,  olhos esbugalhados, imóvel como um perdigueiro ao amarrar a caça, e contendo com sua postura avançada, dribla os dois zagueiros, invade a área, tira o goleiro da jogada...
- Mais um! - saltou ele na cadeira. - Agora não tem mais perigo: podemos prosseguir.
Os comentários corriam em torno à mesa: que diabo de rádio é esse? Deixa ver, que coisa interessante... Tão pequenino. Eles já não sabem mais o que inventar. Liga aí para a gente ver. Quanto está? Gol de quem?
- De Pepe. Espetacular.
- Mais pra cá, que eu também quero ouvir.
- Põe no meio da mesa logo de uma vez.
Pôs o radiozinho no meio da mesa, e a Diretoria, por decisão unânime, em face de tão grave conjuntura para os destinos de nossa nacionalidade, concedeu-lhe primazia entre os assuntos em pauta. Mazzola era um gigante dentro do campo. Didi, um verdadeiro assombro.
- Olha  só esse passe.
-O homem está em todas
Ao fim, os diretores, esquecidos do que dispõe a  Lei nº 2.697, sobre a concessão de crédito agrícola em face da safra liberada no ano anterior, congratulavam-se, entusiasmados: havíamos vencido por quatro a zero.
- Eu sempre disse que o problema de Feola estaria no ataque.
- Gilmar foi o maior, senhores.
- Você viu aquela defesa?
- A leitura do relatório, em face das circunstâncias, a meu ver deverá ficar para a próxima reunião.
Aprovada a proposição, deram por encerradas as atividades daquele dia e foram, incorporados,  tomar um uísque para celebrar.



*Fernando Sabino  nasceu em Belo Horizonte, em 1923. Viveu dois anos nos Estados Unidos como auxiliar do Escritório Comercial do Brasil e exerceu funções de adido cultural de nossa embaixada em Londres. Suas crônicas abordam a vida na cidade grande com seus desacertos e cenas ridículas do cotidiano. É também contista e romancista. Seu romance “O Encontro Marcado” tem recebido edições sucessivas e foi traduzido para diversos idiomas. A história “Iniciada a Peleja” pertence ao volume “O Homem Nu”, 1969. Faleceu no Rio de Janeiro, em 2004.


















quarta-feira, 18 de maio de 2016

     
                               



                                            
         Poesia Breve

          Ecológico

Por Cyro de Mattos

Quando a mata for deserta,
Não mais se colher a flor,
O rio se esconder da chuva
E de Deus não cair a lágrima
Será esta a triste música?

     Madrugada

Por Ceres Marylise

O que seria das noites sem estradas,
e de mim, se não pudesse tê-las
nos versos que desenham madrugadas?

         Carambola
        
         Por Valdelice Pinheiro
                               
                                Se a carambola
                                tivesse dedos
                                tocaria Mozart,
                                certamente.

terça-feira, 17 de maio de 2016

 







Instituto Geográfico e Histórico da Bahia comemora 122 anos de fundação e homenageia cinco personalidades com a Medalha do Mérito Bernardino de Souza



Os 122 anos de fundação do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia serão comemorados nesta quarta (18 de maio), às 18h, em sua sede (Piedade). Na solenidade, presidida por Eduardo Morais de Castro, haverá a entrega do Diploma do Mérito e Medalha Bernardino de Souza a cinco personalidades baianas: a Universidade Federal da Bahia (pelos 70 anos de fundação), a professora e ex-presidente do IGHB, Consuelo Pondé de Sena (post mortem), ao professor Wilson Thomé Sardinha Martins, ao general Artur Costa Moura (Comandante da 6ª Região Militar) e ao escritor Nelson Almeida Taboada; todos com relevantes serviços prestados à preservação dos valores cívicos da Bahia e do seu povo.

A medalha Bernardino de Souza será entregue ao Reitor da UFBA, professor João Carlos Salles, pelas mãos do presidente de honra do IGHB, Roberto Santos, filho do fundador e primeiro reitor da Universidade, Edgard Santos. No seu reitorado, a Bahia ganhou projeção, com destaque para os cursos de Dança, Música e Teatro, primeiros universitários do gênero no país.

Durante a sessão solene, o orador oficial da Casa da Bahia, Edivaldo Machado Boaventura, fará discurso de homenagem aos associados falecidos: Sylvia Athayde (museóloga e ex-diretora do Museu de Arte da Bahia), João Carlos Tourinho Dantas (ex-deputado e ex-vice-presidente do IGHB), Ático Vilas Boas da Mota (escritor), João Justiniano da Fonseca (poeta e político), Eduardo Saback Dias de Moraes (professor) e Remy de Souza (professor). Completam a programação, a posse de novos associados, lançamento da Revista 110 do IGHB e apresentação musical.

Sobre o IGHB - Fundado em 13 de maio de 1894, o IGHB é a entidade cultural mais antiga do Estado, com 122 anos de funcionamento ininterrupto, e uma das 15 instituições apoiadas pelo programa Ações Continuadas a Instituições Culturais, iniciativa da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA) através do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA). Possui a maior coleção de jornais, e o maior acervo cartográfico do Estado. Na Biblioteca Ruy Barbosa e Arquivo Histórico Theodoro Sampaio estão milhares de títulos e imagens à disposição do pesquisador. O IGHB promove diversas atividades culturais e é o guardião do Pavilhão 2 de Julho, no Largo da Lapinha, onde estão os dois principais símbolos da maior festa cívica do país: o Caboclo e a Cabocla.

Sobre a Medalha - A medalha leva o nome de Bernardino José de Souza, sergipano, etnógrafo, que foi professor de Geografia e História, além de diretor da Faculdade de Direito da Bahia. Autor de várias obras importantes ficou mais conhecido na Bahia do que em sua terra natal. Seu nome está associado a um extenso acervo bibliográfico e também a realizações empreendedoras, como as construções das sedes do IGHB e da Faculdade de Direito da Bahia, onde hoje funciona a OAB-BA.



segunda-feira, 16 de maio de 2016




A Bahia Perde o Grande Artista Plástico Sante Scaldaferri



Amigos,

Acabo de postar no Facebook esse texto, impelido pela triste notícia do fraternal companheiro de geração, o artista plástico Sante Scaldaferri, sentimento forte que compartilho com todos.
Abraços.
Florisvaldo Mattos

LUTO NOS CÉUS DA GRANDE ARTE BAIANA
Mal acordo, recebo a triste notícia do desaparecimento do artista plástico Sante Scaldaferri, um dos maiores destaques de minha geração, compondo o seu grupo nuclear com Glauber Rocha, Calasans Neto (o Mestre Calá), Paulo Gil Soares, Fred Souza Castro, todos hoje também saudosos, e os ainda vivos Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes (Joca, o Pena de Aço) e o também artista plástico Ângelo Roberto. Pessoa cordial e afável, um símbolo de amizade real, sincero e solidário, repito aqui o entendimento que desde muito manifestei sobre Sante e sua arte, o de ser ele o maior representante da estética expressionista na Bahia, como pintor, desenhista e praticante de outras soluções estéticas, inclusive virtuais. Tive a sorte de ser seu amigo e o tenho como um exemplo de fraternidade.
Apresento meus pêsames e meu sentimento solidário de afeto a Marina, sua mulher e companheira de toda a vida. Que o nosso querido Sante descanse em paz.
Faço minhas as sentidas e fidedignas palavras que aqui postou a jornalista e escritora italiana Antonella Tita Roscilli, repercutindo essa triste perda para a cultura baiana.
Aproveito para reproduzir texto que escrevi sobre ele e sua arte
 expressionista, mas já numa perspectiva de transvanguardismo, publicado em edição do também saudoso Caderno Cultural de "A Tarde", que vai abaixo, ilustrado com fotos do querido artista e de obra sua intitulada "Mulher Pensativa".
SANTE SCALDAFERRI TRANSVANGUARDISTA
Florisvaldo Mattos
Seja por impulso afetivo e geracional, seja por juízo crítico quanto à obra do artista, a personalidade de Sante Scaldaferri sempre suscitou definições. Atado por laços de cotidiana e sincera amizade, Paulo Gil Soares viu no moço quieto, franco, prestativo e sorridente um "coração aberto a todas as dores do mundo que não deviam ser suas". Com olhar ativo e perscrutante de cineasta ainda por estrear, Glauber Rocha percebeu na linguagem de sua pintura uma "cor Bahia", que a um só tempo concentrava atmosfera, luz e "pathos bahianos", a denotar um fundamento de raízes distante do figurativismo decorativo de fácil transposição, síntese que, à época, de tão precisa e inventiva, para o crítico Clarival do Prado Valladares, dispensava explicações.
Em mais de uma apreciação, Wilson Rocha viu na aparência fantástica e na visão dramática do mundo biomórfico de Sante uma prova de "honradez pictórica"; uma visão poderosa de artista maior "que acompanha a aventura do homem no mundo e observa os absurdos da existência humana", cuja deformação se impunha pela dura verdade do conteúdo, expressa por "uma dramaticidade de acentos irônicos e brutais".
Para Ferreira Gullar, pela "atitude irreverente e corajosa", Sante era "o boca do inferno da pintura baiana", fiel a uma arte de desmistificação que punha "a nu todas as hipocrisias e pretensões, tanto sociais, quanto artísticas", enquanto José Roberto Teixeira Leite reconheceu na "dura realidade" geográfica que seus quadros espelhavam "o severo cotidiano de muitos milhões de brasileiros". Além de atestar "um modo próprio de organizar o universo visual", a um mesmo tempo carregado de significações, Gullar encara os personagens de Scaldaferri, como "saídos de uma iconografia que a cultura urbana submete e marginaliza"; contrariamente ao belo, refinado e transcendente, apontam para baixo, para o popular, que, na obra do artista, "se identifica com a feiúra e a rudeza das figuras e das cenas".
Já numa clave que o desvia dos acenos da circunstância, Walmir Ayala não titubeia em descrevê-lo como "um pintor próximo da massa, do sofrimento indefeso dos desfavorecidos", refletindo o universo cultural de um povo, mas, consciente das suas contradições, "onde a pobreza canta e dança nas ruas", realizando "uma pintura que contesta a diluição provocada pelo consumo turístico".
Eu próprio, ao deparar-me com seus vaqueiros e cangaceiros de fundas e vastas olheiras, seus rebanhos de bois e beatos - signos que chamaria de cor-Nordeste, projetando intensos verdes, vermelho, ocre e sépia -, recriados e tratados com humanidade sobre tela ou madeira, tomei-os em lavra poética como "cintilação campestre" de um universo patriarcal, que aprisionava o tempo e colhia "a rosa alvaçã", na "pelagem do incontemplado".
Foi justamente esta predominante fixação na figura humana, já agora construída com elementos de deformação, decomposição e desarticulação, segundo Teixeira Leite, "com evidentes intenções expressivas", que irá representar um salto na arte de Sante Scaldaferri. Embora confesse, por mais de uma vez, em depoimentos e entrevistas à imprensa, ter evitado vincular-se a escolas ou correntes pictóricas, não resta dúvida de que o impulso e a espontaneidade com que desde jovem abraçou a arte moderna, livrando-se das peias do receituário acadêmico, levaram-no a descobrir a fecunda trilha da cultura popular.
Aferra-se com seriedade e responsabilidade à essência de signos populares e, daí, a uma nova atitude artística em relação à figura - principalmente a figura humana -, que abre seu espírito à estética do
 expressionismo, tantas são as identidades com as suas propostas e intenção revolucionária de olhar o mundo "por trás da aparência das cores" - um de seus ditames. Assim, opta por um vocabulário plástico de deliberada simplificação, formas reduzidas ao
essencial, corpos distorcidos, até se confrontar com certa obsessão pelo grotesco, o satírico e o caricatural, sem com isso estar traindo – muito pelo contrário - aquela representação do pathos baiano que Glauber Rocha de início nele identificou.
Quanto a isto anota Teixeira Leite: "Essa tendência a pintar o ser humano como é por dentro não permite dúvidas: Sante é um
 expressionista, e sua arte, como toda arteexpressionista, resvala para a sátira e para a farsa, para a caricatura e a imprecação". E, pela perspectiva do não convencional e do grotesco, não se recusa a suscitar um parentesco com o alemão Hieronymus Bosch (1450-1516), a que se poderia acrescentar o Goya dos Caprichos (1799), a série de 82 gravuras que retrata um universo de pesadelos e ataques ferozes aos costumes, isto é, à hipocrisia da circunstância. O crítico descreve-o como um "pessimista incorrigível" descrente da nobreza do homem, encarando-o "como um animal depravado e imperfeito", cujo exterior grotesco apenas reflete o seu interior deformado pelas paixões, os vícios e
a ânsia de prazer e poder. Assim, o artista vê o ser humano no seu trânsito social.
Nesse aspecto, há clara similitude entre o baiano e personagens de proa doexpressionismo alemão, a exemplo de Franz Marc, na sua opção conceitual por uma pintura animalista, sob o argumento de que a impureza dos homens que o rodeavam não lhe despertava os verdadeiros sentimentos, pois, enquanto via só feiúra nas pessoas, os animais lhe pareciam mais belos e mais puros, como diz numa carta à mulher (1915), enviada do teatro da Primeira Guerra Mundial (1914-18), na qual veio a morrer.
Embora suponha que nenhum deles "importou vanguardas estrangeiras", nem se submeteu a modismos internacionais, não há como negar que é também pelo visorexpressionista que o poeta e crítico de arte Theon Spanudis mira Scaldaferri, ao unir sua arte, pela originalidade e autenticidade temáticas, à de dois outros baianos, Rubem Valentim e Raimundo de Oliveira. No primeiro, o misticismo e o simbolismo religioso de fundo afro-brasileiro; no segundo, o catolicismo popular bíblico, focado na ingenuidade. "Sante se interessa pelo povo nordestino, seus dramas, paixões e vitalidade", sublinha Spanudis, agarrando-o pela geografia. Com variações de temas – no caso de Valentim, o construtivismo simbólico das crenças de origem afro -, arrisco-me a dizer que os três são tributários daquele despojamento rude e elementar de cores fortes e saturadas, aplicadas com pincel grosso, para sugerir ou definir figuras num espaço repleto de vibração interior, marca do
 expressionismo - lógico que mais acentuado no caso de Scaldaferri, cujo parentesco artístico na Bahia, a meu ver, o alinha com Mário Cravo e, no Brasil, com Iberê Camargo.
Sem ser um especialista, mas insistindo na tecla da codificação pictórica doexpressionismo, que, pela violenta deformação da figura, o elemento fisiológico, o corporal e a obsessão pelo corpo humano - e, porque não dizer, por um ainda persistente vínculo com a cultura européia -, o aproxima da arte de Munch, Kirchner, Egon Schiele, Heckel, Ensor e, mais recentemente, Francis Bacon, sou tentado a ver em Sante, principalmente no que vem construindo desde a segunda metade dos anos 80, que culmina nestas obras expostas pela Galeria Paulo Darzé, a buscar inter-relação de sua arte com a representativa dos movimentos de pós-vanguarda ou transvanguarda, que vicejaram, persistem e se desdobram na Alemanha, Itália, Estados Unidos e outros países.
Não tenho dúvidas de que é nesta saga estética de ousadias figurativas que se encaixa confortavelmente Sante Scaldaferri. A refinada afetação (roçando o excessivo e o vulgar), o gosto por efeitos espaciais desconcertantes, a intensidade emocional derivada das formas distorcidas, as desproporções, a maestria no manejo das técnicas da pintura, as excitantes e eróticas alusões, a tendência à exuberância e ao monumental, a marca de desespero e manifesto horror, a secreta irracionalidade - enfim, toda uma arqueologia visual da transvanguarda, que, segundo a crítica, evoca o maneirismo de Pontormo, Parmigianino, Bronzino e El Greco, sendas do barroco, e, cogito – porque não? -, do romantismo libertário, de Goya, e visionário, de William Blake. Pela tendência à narração insubmissa e satírica, pejada de ironia, a habilidade e variação no uso das técnicas da pintura, recorrendo entre outras até à
quase pré-histórica encáustica, de suportes e materiais (madeira, borracha, pano, plástico), além da vitalidade e independência do vigoroso desenho -, com a propositada malícia que levou Umberto Eco a vislumbrar em quadros seus "uma sombra pop"-, vejo em Sante um artista mais identificado com a rebeldia estética de alemães, como Georg Baselitz, Anselm Kiefer, Jörg Immendorff. A. R. Penck, Sigmar Polke, Walter Dahn; os italianos Sandro Chia, Francesco Clemente, Enzo Cucchi, Mimmo Paladino; os americanos Julian Schnabel, David Salle, Cindy Sherman e, em certo sentido, por indícios mais recentes, com a rudeza de desenho e grafismo de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, e outros mais, todos legítimos representantes do que desde os anos 80 se passou a chamar de transvanguarda, pelos laços com as vanguardas de inícios do século passado e suplantação de seus processos e desdobramentos.
Como eles, sem se recusar até mesmo ao apelo à caricatura (afinidade possível com o traço satírico de George Grosz), em essência, Scaldaferri pinta visões, as suas, de um mundo torto, execrável, no seu secreto ou exposto horror. Gostaria de reformá-lo; não podendo, escarmenta-o, denuncia, ironiza, satiriza. Como? Pela distorção, pela vigorosa e contundente expressão do grotesco, contra o totalitarismo subliminar da sociedade em que vive, a sua desigualdade, a miséria explícita e invencível. Muitos se recusariam a pôr um quadro dele na parede da sala-de-estar, não por alegada feiúra, mas por outras obsessões, uma delas a hipocrisia.
Conheci Sante por volta de 1956 (não sou forte em datas), pela mão de Glauber Rocha, no instante mesmo em que um punhado de jovens de mente lúcida e febril começava a agitar o meio cultural baiano (entre os quais, além dele e GR, Paulo Gil, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ângelo Roberto), a partir das sessões de poesia dramatizada, levadas no auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), sob o mítico e lúdico nome de Jogralescas, no movimento que depois
se rotularia vagamente de geração Mapa, seguindo um hábito do tempo. Acostumei-me, a partir daí, a conviver com este monumento de fraternidade, que já ostentava o sorriso largo, o bigode mexicano, a barba à época acastanhada e a luminosa e irrefreável calvície. Acostumei-me também a admirar um artista cuja obra se afirma, em suas várias fases, na busca de horizontes mais amplos, de essência perdurável, em conteúdo e forma, rumo à universalidade que lhe apontam suas inquietações interiores, sua visão de mundo e suas emoções.
Acompanhei essa árdua prova de fidelidade a um sacerdócio, de incontestável amor à arte.
Por isso, mesmo ante uma crítica mais purista, higiênica e depilada, atuante no Rio e São Paulo, que, no dizer de Frederico Morais, exerce uma ditadura no país, torcendo o nariz a exemplos de sinceridade e imaginação como este, de Sante Scaldaferri, ele segue impávido seu caminho, sua devoção. E, ante tais mostras de covardia e intencional descaso, a cada exposição, catálogo ou livro de arte que publica, ao sair de cada um desses eventos, esse grande artista baiano ostenta no rosto e no riso uma expressão de radiante e sonora felicidade, que é uma lição de bravura, para a arte e para os artistas, e de vida, para todos os que o conhecem, cuja obra não se desmerece ante nenhum grande pintor brasileiro.
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista, com livros de poesia e ensaios publicados; integra a Academia de Letras da Bahia.



                           ****

Caro Florisvaldo Mattos

Que triste notícia. Abala, como abala.
Tenho o privilégio de ser admirador da arte desse grande artista baiano. Admiração que vem desde os idos da saudosa Livraria Civilização Brasileira, na  Rua Chile, quando o  conheci. Uma de suas generosidades  para comigo está  no desenho da capa que ele fez para meus livros Os recuados, contos,  segunda edição, 2014,  e Poemas da Terra e do Rio, 2015,  publicados pela Editora Via Literarum, do sul da Bahia.  Ele era um artista de feitio simples, prestativo, cordial. Solidário. Dele tenho certeza que existe o artista simples como o homem e o homem simples como o artista.
Externo meus sentimentos à esposa do Sante e à sua família nessa hora de grande pesar.  Que descanse no jardim da saudade e piedade, na eterna casa de Deus. 
Abraços, dessa vez  com tristeza. 

Cyro de Mattos 

Foto de Florisvaldo Mattos.

sábado, 14 de maio de 2016




                                  Machado na Cerca
                                     
                                     por Cyro de Mattos 


A casa-sede da fazenda com a pintura nova: as paredes brancas, portas e janelas amarelas. Ventilação e luminosidade invadem agora todos os cômodos, o que sempre quis o coronel Sotero Bala. Andorinhas fazem o ninho nas laterais do telhado novo. Trissam alegres  sob  a luz pura do dia.  Anos passaram, a casa-sede  ao abandono, servindo de morada  de ratos e morcegos no forro,  ninho de barata e lagartixa nas gretas. 
            Por trás da casa-sede, a chácara zelada por mãos competentes do novo capataz. O chão limpo, capinado com gosto para se achar uma moeda. As árvores frutíferas bem cuidadas, sem casa de cupim nem trilhas de formiga. A natureza ali alegre, pássaros cantando e bicando as frutas. 
            Os pastos gramados para os animais de serviço ao lado da chácara. Cinco divisões. O Ribeirão de Água Doce passa na baixa, brilha como um lagarto sob o sol de verão. Atravessa os pastos e alcança,  adiante numa curva, as roças novas de cacau. Seis barcaças e uma estufa  não  param de receber  cacau durante as colheitas, quase o ano todo.
            Descansa na rede, o peso do corpo quase tocando até o chão. Sono bom com a boca aberta e o sonho leve reconfortam corpo e alma, embalando-o  por entre vagas serenas. E o bater ritmado do coração. Charuto apagado, esquecido no piso de cimento.
            Céu alagado de luz. Periquitos chegam numa nuvem estridente, pousam nas bananeiras da chácara. A zoada acorda-o, os olhos entreabertos divisam  seres e coisas do mundo de fora. Vê primeiro os burros com a muda, amarrados pelo cabresto  aos dois moirões do terreiro. O tropeiro vigiando-os, sentado no cepo da jaqueira perto das barcaças, fumando o cigarrinho de palha. Olhos fiéis de quem sem pressa aguarda a ordem. Ouvidos atentos para qualquer ruído estranho.
            A voz roufenha ordena ao tropeiro:
           - Siga na frente, logo depois chego.
           Boceja como se quisesse sorver todo o ar  puro em volta. Antes de retornar à cidade, resolve fazer ligeira inspeção na casa-sede.  Na próxima vez que voltar à fazenda quer encontrar as coisas no mesmo lugar que deixou. Abre, fecha gavetas.  Passa os olhos com vagar sobre coisas nos móveis e cômodos. Agora que havia recuperado a casa-sede, o telhado novo, com mais cômodos, sanitário com piso ladrilhado e paredes azulejadas até a metade, não pode desfrutá-la mais alguns dias. Ter que voltar para a cidade, diacho! Também pretendia vistoriar as roças novas de cacau nas baixas. Ver os cacaueiros salpicados de flores, admirando-os sem pressa. Ficar embevecido com as árvores diante dos olhos como num jardim florido, prometendo doçuras na primeira safra,  como se antevê nos galhos arriados  com o peso dos frutos.
            A mulher tinha avisado. Neste ano de eleições seu lugar é aqui na cidade. Nada de pensar em fazer melhoria na casa-sede da fazenda, nem vistoriar as roças novas. O novo capataz não sabia cuidar das roças com zelo?  Tanto das velhas como das novas melhor do que o próprio dono. Corria um risco grande, se ficasse muito tempo na fazenda em ano de eleições. Ia enfraquecer o mando político, dando rédea larga  ao doutor Raposo Primeiro, inimigo político manhoso, o pior dos adversários. Não perde festa de casamento, aniversário e batizado para fazer discurso que empolga,comove,  desarma o coração rancoroso do vivente mais embrutecido.  Deixa escorrer a palavra fácil no melhor da festa, arrancando admirações e aplausos  no ambiente animado com a fala dele. Enterro então é um de seus momentos marcantes como orador sem igual na cidade, numa hora mais triste de todos. Em momento inspirado, as palavras que solta doídas fazem a família do morto e os presentes ensoparem o lenço com o choro derramado. Acontece até desmaios, desses que pode levar a vítima ao último suspiro, se não for socorrida às pressas. Sempre ressalta as qualidades do defunto, marido exemplar, pai generoso, cidadão honrado. Tanto emociona que só falta o falecido sair do caixão  para agradecer o palavreado afetivo, solidário, em momento indesejado, que os humanos se rendem submissos, pois nunca  conseguem desvendá-lo.  Guarda o melhor da fala para o final, afirmando com a voz trêmula que para isso fomos feitos todos nós, como o vento que passa ninguém fica nesta vida. Nascer, viver e morrer, eis na verdade absoluta o  que somos. Descansar, enfim, no jardim da piedade e saudade, mas deixar como consolo o  legado que não tem preço, ser lembrado sempre em bem-querer na saudosa memória dos que ficam no lado de cá deste mundo, nem sempre justo para muitos.
            A mulher, Benzinha, não deixa de ter suas razões. O loquaz Raposo Primeiro não vacila quando é  para conquistar mais amigos, adeptos, eleitores novos, com o único objetivo de conquistar um dia o comando da cobiçada Prefeitura Municipal de Bom Jesus do Mocambo.Quando isso acontecer, só para ele, um esperto fino,  o pedaço melhor do bolo, apenas  um pouco para a corja dos correligionários bajuladores, que causam nojo. No fundo só querem  tirar proveito do poder político, desprovidos de qualquer amor pela cidade.    E dona Benzinha, sempre vigilante, alertando-o: Veja que até os correligionários mais antigos de seu círculo político estão fugindo para o outro lado, sem motivo que justifique a atitude, a não ser o da crença de que este ano a prefeitura municipal vai ser de  doutor Raposo Primeiro. E não da pessoa  que você aponte e abone para se candidatar a prefeito,  como há anos acontece. Mas os jagunços estão com ele aí mesmo, prontos para dizerem quem é que  fala mais alto e com melhor som nestes cantos do Japará. A qualquer momento que precise, atrás como na frente, só querer e ordenar, que eles sem hesitar obedecem. Principalmente num caso de urgência urgentíssima, que se delineia agora como uma situação incontornável, a cada dia se apresentando  com sua feição nada confortável, ameaçadora, de enorme perigo. 
           

            Zé Taboca é o seu apelido. Modelo incomum de força natural, cabeça enterrada no pescoço grosso, ombros largos. Braços compridos, musculosos, mãos grandes,  calosas. Com o machado desfere golpes profundos na árvore enorme,  de tão grossa um homem não consegue abraçar, às vezes dois. Faz a  boca grande,  funda  em um dos lados,  no outro talha e sangra o tronco com machadadas que não cessam. Rosto respingado de suor, pele negra luzidia, músculos dos braços cheios de vigor. Até sentir que a árvore inclina-se aos poucos, vem sendo empurrada com  força pelo vento, um sorriso nos dentes brancos alumia o rosto bexiguento. Lá se vem rasgando os galhos das outras a árvore que tomba,  queda que estronda o chão e ecoa pela mata  como  barulho do mundo se acabando.  E o buracão no teto da mata.
            No mole ou no duro os passos seguros. Pelo caminho estreito agora, forrado de folhas que caem das arvores grandes. Bornal a tiracolo, espingarda, facão na cintura, machado na mão, lâmina sempre afiada. Pretende derrubar uma nesga de mata comprada ao carvoeiro da vila. Limpar o chão, erguer a tapera, ali viver com mulher e filhos.  Plantar roça de mandioca, construir uma casa de farinha, vender o produto na vila. A mulher vai se encarregar do criatório com bicho de terreiro.
            Desce o morro na parte de uma capoeira rala. Segue  junto ao ribeirão que corta as roças novas de cacau do coronel Sotero Bala. Daqui  a pouco alcança a estrada real, caminha nela umas duas horas até encontrar o desvio depois da lagoinha e a gameleira velha. Pouco depois do desvio chega até o pé da Serra da Onça Pintada. Sobe pelo espinhaço da serra  e lá no topo vai percorrer os marcos de pedra pontuda nos quatro cantos da nesga de mata comprada ao carvoeiro. Pensa em começar a derrubada dos paus grandes amanhã cedo.
            Ao divisar a lagoinha e a gameleira velha, interrompe a caminhada com olhos inquiridores. A estrada real fechada com uma cerca de seis fios de arame. Roceiros grampeiam o arame novo nas estacas. Seis fios impedem a passagem de qualquer pessoa,  até mesmo de bicho menor, como bezerro de poucos meses. Despropósito que não pode ser feito na estrada real.
- Quem mandou fechar a estrada com a cerca?          
- O coronel Sotero Bala.
- Merda de coronel Sotero Bala! – desfere golpes firmes com  o machado, repetidos numa fúria incontrolável.
A estrada real vem do tempo do  avô Bacabal, passagem livre de todo mundo, pensa, enquanto os roceiros recuam assustados, vendo o arame embaraçado nos pedaços de estaca pelo chão como uma coisa só.
- Ficou doido? – um com os olhos de temor, amarelados.
           - Afronta dessa o coronel Sotero Bala não engole – outro com a voz trêmula, fazendo o sinal-da-cruz no peito.           
           Veias inchadas no pescoço como cipó fino, zangado retoma os passos na estrada real. Do estômago à cabeça a raiva circula. Vento morno sopra no peito enfezado. Sua passagem assusta passarinhos  pelas margens.
           Um sol de fim de tarde ainda brilha na lagoa onde garças pescam peixinhos e sapos pequenos no trecho raso.



            As botas tiram sons fundos no assoalho da sala. Desce a escadinha do alpendre. O homem à sua frente, cabelos desgrenhados, rosto suado. Medo nos olhos.
            Numa voz forte:
           - Abra a boca e fale logo, homem, viu alguma assombração?
            - A cerca da estrada real.
           - O que aconteceu?
          - O machadeiro Zé Taboca botou abaixo. Nem ligou quando soube que a cerca na estrada real foi por ordem do coronel.
            - Façam a cerca de novo, amanhã quero conhecer esse desmiolado Zé Taboca.
             

             Os jagunços cedo  chegam  à casa-sede da fazenda,  montados nas mulas  bem tratadas, crinas aparadas, cascos com ferraduras novas,  arreios vistosos. Armados de revólver, repetição,  punhal e faca. Barbas e cabelos grandes, chapelão, lenço vermelho no pescoço. Em cada lado protegem o coronel Sotero Bala no cavalo pampa, que só ele monta. Os jagunços são oito, dois deles irmãos gêmeos, temidos até pelo resto do bando. Com que frieza e cálculo executam qualquer empreitada de morte.
            Calados seguem os cabras e o coronel Sotero Bala. Aproximam-se da cerca que os homens estão erguendo pela segunda vez. Apressam  as montarias quando avistam  um negro alto e forte, caminhando sozinho pela estrada. Ele está vindo na direção da cerca, os passos ligeiros, quase correndo.
            De novo os olhos inquiridores de Zé Taboca circulam pela cerca;  de novo está sendo feita por ordem do coronel Sotero Bala. O branco dos olhos anuvia, o corpo estremece incontido de raiva. Frente a frente dos jagunços,   estes com as armas engatilhadas. Careta medonha, numa grande raiva, torce o rosto cor de carvão.  Fúrias invisíveis apossam-se do corpo. Suspende e desce o machado. Funga com as narinas acesas de ódio, espuma e resmunga. Diabo de coronel Sotero Bala,  que a ele não amedronta. Cospe com violência, passa a mão nos olhos que ardem, vai derrubando, uma a uma, todas as estacas. Corta os arames.
             Os jagunços impacientes, à espera da ordem para que detonem uma saraivada de balas, enviando o mais rápido aquele negro desmiolado para as profundas do inferno,  acabando assim  com a afronta descabida, dardejando nos olhos incrédulos do coronel Sotero Bala. Encolhido na sela do cavalo, não acreditava  no que acaba de ser visto.   As sobrancelhas espessas franjam-lhe a testa. “Um homem corajoso como esse não merece o destino de machadeiro” , pensa.
            Para o jagunço mais perto dele:
           - Contrate o homem para ficar do nosso lado.
            Os jagunços não chegam a compreender o que fez o coronel Sotero Bala deixar de dar a ordem para que eles detonassem as repetições e acabassem com tamanha afronta acontecida ali mesmo.
       Atrás, um deles permanece na conversa mansa com Zé Taboca como  se fossem velhos conhecidos. O assunto não deixa de ser interessante, o machadeiro acha até graça.

·        Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro do Pen Clube do Brasil, Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. “Machado na Cerca”  pertence

ao livro O Velho e o Velho Rio, contos e novelas, no prelo da Editora Escrituras (SP).

segunda-feira, 9 de maio de 2016







Três Sonetos da Mãe Ausente


                 Cyro de Mattos


I

- Menino, já para dentro
  Que vem o vento ventoso
  Levado, levando cisco!
 Menino, já para  dentro!

- Boa romaria faz
Quem em sua casa está
Em paz. E essas adivinhas:
O que é,  o que é, o ano todo

No deserto hóspede  ele é?
-Responda certo, menino
Esperto. Como esquecer

Essa de pura carícia:
A melhor  sombra de dia.
Da noite o beijo. Quem é?


II

A casa era pequena, mas em tudo
Os dias tinham  tuas mãos zelosas.
Colocavas nos vasos aquelas  rosas.
Como sonho na manhã perfumando, 

Esbanjavam pelos ares  ternura.
Davam vida à máquina de costura
Tuas pernas ativas. Os bordados,
Beleza tecida,  sempre lembrados.

Como o mundo de Deus era grandão.
Dizias que  primeiro a obrigação,
Depois,  filho, é que vem a diversão.

Só de lembrar  me dão água na boca
Teus doces. Cativando com açúcar,
Das  mãos divinas as amargas nunca.
  
III

A casa toda alegre, a manhã sente    
Tua voz cativando  desde cedo, 
Os afazeres no ar  iluminado
Por teu jeito de torná-la cantante.

No quintal do vizinho  passarinhos
Faziam o coro  com outros cantos.
Não sei qual dos cantos era o mais lindo,
O teu com o filho contente sorrindo 

Ou o deles na festa,  entre tantos,
A manhã pura bicavam,  afoitos.  
Como se fossem hoje os teus gestos

Ainda estão nítidos dentro de  mim 
Ligados num sonho que não tinha fim.
Tua voz, mãe, não ouço,  teve um fim.