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domingo, 23 de agosto de 2015

Leitura Crítica de Antologia Poética de Cyro de Mattos por Juan Ángelo Torres Rechy



Antologia de Cyro de Mattos: Uma Leitura de Juan Ángel Torres Rechy, Poeta e Filólogo Mexicano, da Universidade de Salamanca, Espanha.

          
          Desde as supremas cavernas da contemplação, de um voltar à vida vivida e sonhada por quem cumpriu com humilde satisfação os deveres e objetivos profissionais e humanos, as imagens poéticas da antologia Onde Estou e Sou / Donde Estoy y Soy, do escritor brasileiro Cyro de Mattos (Itabuna, Bahia, 1939), resgatam os gritos e os murmúrios líricos que compõem o mosaico de sua essência. Com uma profunda bagagem literária (El Cid, Darío, Whitman, Neruda, etc.), Mattos entrega-se por inteiro à sorte: lança ao alto a moeda e transforma-se no espectador e na vítima deste jogo de cara ou coroa.
          O autor domina com maestria e elegância extremas a tradição literária renascentista do soneto, mas também rompe com cânones e cria gritos de vanguarda – em “Agudo Mundo”, o impulso poético transgride a sintaxe, e o lirismo deambula por ambientes surrealistas; enquanto “Galope”, de fato, expressa o som galopante de cavalos. Em seus poemas encontramos o menino que vê o mar pela primeira vez, e o homem mais velho que se detém em uma parte do caminho, escutando o retroceder de seus passos, em um turbilhão de reminiscências e fantasmas que o dilaceram. Sua terra natal. Nostalgia nas pedras. Velhos armazéns. Rios. Sim, seu rio, sua inocência, sua infância, todo aquele paraíso.
Destaca-se na poesia de Mattos um tom de íntima confissão. Uma fragilidade aberta aos disparos e abraços do mundo. Os poemas que integram esta seleção foram escolhidos entre oito livros, inscritos no conjunto de uma década profícua: cinco publicados – Vinte Poemas do Rio, Cancioneiro do Cacau, Ecológico, Vinte e Um Poemas de Amor e Oratório de Natal – e três inéditos – Rumores de Relva e Mar, Agudo Mundo e Devoto do Campo.
No começo da antologia encontramos o poema “Lugar”. Nele, a perspectiva do eu lírico não exalta as pessoas ou a natureza; não engrandece ou humilha com olhares satíricos ninguém; tampouco resulta horizontal, de igual para igual. Ao contrário, logo reconhecemos sua poética, que se sabe um grão no deserto, e é a partir desta pequenez que o poeta lança seu grito (que é ele mesmo) pelos telhados do mundo. A poesia, então, irriga suas veias, faz com que transcenda o tempo histórico, localizando-o em um passado povoado de mistérios. Ela realça o sentimento, valoriza-o. E nos leva a vislumbrar o sentido da vida para nosso poeta: viver o medo, as lágrimas, o beijo, o riso; ser música e sonho.
O olhar inocente do menino será diferente no homem adulto – ainda que este, para acompanhar tal olhar, necessariamente será obrigado a encarná-lo, resgatando-o com a palavra poética. “O Menino e o Rio” tem a estrutura de uma litania. O ambiente adquire um tom grave, solene, entremeado, ao mesmo tempo, por antífonas coloridas e deslumbrantes. Em “Rio Definitivo” encontramos a mesma tessitura. A descrição do rio desejado não coincide com a do opulento Amazonas/Com seu mundo de água, nem com a do transbordante Nilo e suas dádivas. Para falar do rio pelo qual anseia, Mattos recria uma composição de lugar que nos leva às vivências de sua infância. E desfia, em cada verso, um rosário de lembranças: os remansos, barrancos, trampolins; a lua e o areal; ilhas com tesouros, descobertas na penumbra; as lavadeiras nas pedras, os tropeiros e os meninos de peito nu, ao vento. Testemunhamos, assim, um caminho que percorre as galerias da vida do poeta até alcançar o “Soneto do retorno”, por exemplo, no qual a voz lírica não será mais a do menino, e sim a de um homem mais velho – precisamente do homem que regressa à terra natal, ao rio de sua infância. E cujo retorno é marcado pelo signo da Cruz.
“Cancioneiro do Cacau” é introduzido por uma nota desoladora, uma epígrafe bíblica que orienta nossa leitura: “Oh, morte, quão amarga é tua lembrança” (Eclesiástico 41:1). É amarga para um homem  em paz na vida e que  ainda pode dela retirar seus proventos. Não é uma morte que livra do sofrimento o homem necessitado, cansado e sem esperanças. Tudo passa como o vento e o poeta encontra-se à beira do vazio: Vês morte no ar fendido por bruxas,/ Aragem que na solidão despenca/ Nostalgia, gargalhar incesante/ Dos frutos já mortos (…) //Estranho não habitar mais a terra/ Dos frutos de ouro. No soneto seguinte podemos ler: Agora sob cinzas, no desamor/ Espalhado por vassouras-de-bruxa, / Calo-me sem saber para onde vou.
A voz de Mattos, em alguns momentos, transforma-se em um sussurro que nos guia ao interior deste homem em plena consciência de si mesmo. Recria a pintura dos quadros pendurados, expondo suas entranhas: Um povo e sua flor/ Dentro de mim, / Com vozes, cores, ríos. / Um povo e sua flor/ Com ventos, aves, penas. Dois outros fundamentos que sustentam sua obra, um dos quais já nos referimos brevemente, são o erotismo e o sentimento religioso. Cinco são os poemas eróticos recolhidos de Vinte e um poemas de amor, cujo título nos remete imediatamente ao livro de Neruda, publicado em 1924. Por outro lado, títulos igualmente tão significativos como “Este Cristo”, “Soneto da Paixão”, “Santa Cruz” e “Sexta-Feira Maior” nos introduzem às outras vozes e espaços do poeta amadurecido, ao mesmo tempo em que cumprem o papel de prelúdio em relação aos cinco últimos poemas da antologia, incluídos em Oratório de Natal.
O autor baiano Cyro de Mattos é advogado, jornalista, contista, romancista, cronista, poeta e organizador de antologias. Faz parte de vários Centros de Estudos, Academias e Institutos. Pertence a Ordem do Mérito da Bahia (no Grau de Comendador), é membro da União Brasileira de Escritores, tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, da Academia de Letras de Ilhéus e da Academia de Letras de Itabuna, entre outros. Ganhou cerca de 40 prêmios literários, entre os quais o Prêmio APCA (1992), da Associação Paulista de Críticos de Arte, de melhor livro de literatura infantojuvenil; o Prêmio Literário Internacional Maestrale-San Marco, por Cancioneiro do Cacau; o Prêmio da Academia Brasileira de Letras; e o Prêmio Miguel de Cervantes, da Casa dos Quixotes (Rio de Janeiro), para autores em língua portuguesa.
A edição bilíngue desta nova antologia de Cyro de Mattos foi organizada e prefaciada pelo poeta e tradutor peruano Alfredo Pérez Alencart. Apresentou-a o autor desta resenha, na acolhedora tarde da quarta-feira, 02 de outubro de 2013, no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, juntamente com o Vento da tarde/Viento de la tarde, de Rizolete Fernandes, e Alma Aflita/ Alma afligida, de Álvaro Alves de Faria, durante a homenagem a Frei Luís de León, no XVI Encontro de Poetas Ibero-americanos, coordenado por Alfredo Pérez Alencart.
Por fim, Onde Estou e Sou ressalta o doce sonho romântico e azul da infância. Ao mesmo tempo é um livro da vida adulta e madura do poeta de Itabuna, que valoriza a esperança, o renascimento, e, às portas do inverno, a primavera sempre verde.  Contemplamos o homem mais velho que se detém e escuta o retroceder de seus passos no dinamismo de reminiscências,  que o arrebatam na sua essência, ferida pelo desejo das águas puras e profundas da infância.

Tradução: Vássia Silveira
Da Universidade Federal
De Santa Catarina
Fonte: www.crearensalamanca.com/antologia-de-cyro-de-m...

terça-feira, 18 de agosto de 2015



                           Onça Preta no Zoológico

                                        Cyro de Mattos
            
               Fui a Salvador com Mariza  para assistir a posse do escritor Antonio Torres na Academia de Letras da Bahia. A casa que abriga pessoas valorosas das letras e cultura na Bahia está instalada no Palacete Goes Calmon, erguido na Avenida Joana Angélica, número 198, bairro de Nazaré. O palacete tem como vizinho o prédio onde funciona a Faculdade de Engenharia  Mecânica.
            Uma noite festiva, aquela em que  ouvi atento dois discursos revestidos de verdades e conteúdo humano significativo. De  dois escritores legítimos, que não fazem da arte literária passatempo ou adorno.  Antonio Torres mostrou ser humanamente reconhecível nele o escritor que descreve a existência de pessoas simples e diz  da importância de ser gente. O ficcionista e doutor em letras Aleilton Fonseca fez uma viagem de tranqüila navegação pelas obras  do romancista de Essa Terra. Ressaltou  como é importante manter acesa a chama da existência  pela arte dos que emprestam a palavra ao sonho. Necessário que sejamos atuantes para que essa corrente nunca seja rompida,  deixe de anunciar  o fundamento da vida,  para que assim seja lida nossa  existência diante do mundo.
Prometi a Mariza que íamos fazer no outro dia uma visita ao jardim zoológico. Transcorreram  mais de cinqüenta anos desde que o jardim zoológico fora inaugurado  como um novo espaço de diversão e lazer em Salvador.  Logo depois de inaugurado  fui conhecer aquele espaço cheio de bichos, que eu só tinha visto no cinema. Era então um jovem vindo do interior, estudante do Colégio da Bahia (Central).  Tantos anos, pensei, fui pela  primeira vez visitar o jardim zoológico.  O tempo bebe os dias, escorre e lambe.  Como  o vento, que esteve aqui nesse instante e sumiu, a vida  passa.
Quando lá cheguei, dei  pela falta dos chimpanzés, girafa, leão, elefante. Bichos que conheci de perto quando visitei o jardim zoológico naqueles idos de uma cidade  tranqüila, outra igual não havia para  se viver. Chamou-me a atenção  agora algumas jaulas vazias com o mato crescendo dentro. O zoológico não era como antigamente quando conheci.  Com pouca gente,  nem parecia que fora um lugar alegre durante as estações em que o sol brilhava radiante sobre todas as coisas. Ali aconteciam cenas interessantes com os bichos. Umas faziam sorrir a quem visse, outras encantavam gente pequena e grande.    
A manhã prenunciava chuva. Fazia frio, o céu estava coberto de nuvens cinzentas. Não liguei para o tempo encapuzado. Interessava era  a natureza com seus habitantes da selva. Queria ver  nossos parceiros da natureza desde não  sei quando. Com eles,  a vida apresenta-se menos incompleta.  Corre na terra, pula no alto, voa por entre verdes e azuis. Não estamos sozinhos no mistério da vida e da morte. Pena que o bicho-homem não  respeite a natureza, hoje como ontem. Não poupa o verde, mata  os bichos,  numa sanha incontrolável.
 A neta Marizinha havia me falado que na sua visita recente ao zoológico de Salvador  tinha conhecido  a tal da onça lombo-preto. Um bichano enorme, que o  vô Cyro gostava de lembrar quando falava dos bichos que viviam nas matas virgens do Sul da Bahia. Temida  por todos os bichos no tempo em que eles falavam.
               A neta dissera a verdade. Lá estava ela, a afamada e traiçoeira onça lombo-preto. A cara feiosa, pescoço de bezerro, o pelo escuro como a noite apagada de estrelas. Deitada em cima da pedra, aquele  felino preto, parente da  onça pintada e da suçuarana, uma de cor avermelhada,  a menor das três. Desconfiei logo dela, talvez se fizesse de mansa enquanto parecia dormir.  Como o homem prevenido é valioso  nessas horas de visões perigosas, caí fora de perto daquela jaula onde a bichona sonsa parecia fingir que estava tirando uma soneca. Puxei pelo braço Mariza, deixando para trás uns estudantes que tomavam  a lição  sobre o bicho  com o professor magro,  de estatura alta, nariz de tucano,  entre sério e compenetrado.
       Quando ela deu um esturro de repente, estremecendo tudo ao redor, o que se viu foi gente  correndo para os dois lados. Disseram depois que o professor perdeu os óculos na corrida desabalada. Eu já estava longe, acomodado numa barraca, na entrada do zoológico. Eu e Mariza, calmos,  fazíamos um lanche. Assim abrigados,  estávamos  salvos de um ataque feroz daquele bicho assombroso.
       Dizem os mais velhos  que  quando ela ataca crava os dois dentões afiados no pescoço do escolhido para o almoço.   Besta eu nunca fui  para ficar perto do mais perigoso de nossos felinos, que só investe contra  a vítima pelas costas. Só de ouvir seu esturro na mata  o caçador mais corajoso se borra,  faz xixi nas calças, bate o queixo como se estivesse com febre alta. Fica todo ele amedrontado. 

Literatura na Arquibancada: Contos Brasileiros de Futebol


Ler matéria completa em:   LITERATURA NA ARQUIBANCADA

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

LETRASELVAGEM e CASA DAS ROSAS: Convite


Edições LETRASELVAGEM e CASA DAS ROSAS convidam para o lançamento
dos seguintes livros:

1) “Poeira e Escuridão”, de João Batista de Andrade (contos)
2) “O Tribunal”, de Álvaro Alves de Faria (romance)
3) “Os Vira-Latas da Madrugada”, de Adelto Gonçalves (romance)

   Local: CASA DAS ROSAS (Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura),
Av. Paulista, 37 (Metrô Brigadeiro) - São Paulo / SP / Brasil.
Data: 18 de agosto de 2015 (terça-feira), às 19h30. Entrada Franca.

* Precedendo à sessão de autógrafos, os três autores (que ambientaram as suas narrativas no sombrio e asfixiante período
da Ditadura Militar de 1964) serão apresentados ao público pelo crítico FÁBIO LUCAS, o qual também fará breve escorço
a respeito do tema “Literatura e Liberdade”.


SOBRE OS AUTORES/OBRAS:

1º) João Batista de Andrade / "Poeira e Escuridão" (contos):


João Batista de Andrade nasceu na cidade mineira de Ituiutaba, em 1939, e vivenciou complexos momentos da recente história do Brasil, como o período da Ditadura Militar (1964-1985).
Leitor inveterado desde a adolescência, quando escreve os seus primeiros contos, torna-se conhecido nacional e internacionalmente, entretanto, ao desenvolver notável carreira de cineasta, tendo realizado filmes de ficção e documentários que impactaram a crítica e o público, como, por exemplo, “Doramundo” (Vencedor do Festival de Gramado /1978), “O homem que virou suco” (Medalha de Ouro de Melhor Filme no Festival de Moscou/1981), “O Tronco” (Prêmio de Melhor Filme pela Comissão das Comemorações dos 500 anos de Brasil, no Festival de Brasília/1999) e “Vlado, 30 anos depois” (2005).
Premiado e aclamado como cineasta, sempre alimentou entranhada relação com a literatura, que se manifesta em sua filmografia, quer na urdidura dos roteiros, quer na transposição para as telas de obras literárias, como os romances Doramundo (Geraldo Ferraz), Veias e Vinhos (Miguel Jorge) e O Tronco (Bernardo Élis). Enquanto colhe louros como cineasta, vai publicando os seus livros, sete até este momento (o último intitula-se Confinados: memórias de um tempo sem saídas).
Militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) nos chamados “anos de chumbo” da Ditadura Militar implantada no Brasil em 1964, João Batista de Andrade — cineasta, jornalista ou escritor — apresenta um olhar crítico sobre os (des)caminhos trilhados pela sociedade brasileira. Conforme escreveu Rodrigo Francisco Dias, mestre em História pela UFU (Uni­versidade Federal de Uberlândia): “Andrade explora os com­plexos aspectos psicológicos de seus personagens e nos apresenta a sua visão acerca do Brasil contemporâneo.”
Ao misturar realidade e ficção, é possível perceber pontos de contato entre a história de vida do autor e as histórias de seus personagens, como a do velho arquiteto Júlio, um homem em crise que sofre com sua solidão (Confinados).
A sensação de solidão, aliás, é elemento importante em toda a arte de João Batista de Andrade. Em Poeira e Escuridão, ora publicado pela LetraSelvagem, os personagens também aparecem “confinados” pela cruel realidade de um mundo onde as pessoas não conseguem encontrar no tempo presente a realização de projetos e sonhos do passado, resultando dessa situação um sentimento de impotência — o mesmo sentimento que o autor deve ter experimentado em 1989, quando, desiludido com a situação do país sob o famigerado Plano Collor, interrompe sua carreira de forma drástica e se auto-exila no interior brasileiro, só retornando ao set de filmagens oito anos depois, com o épico “O Tronco”. João Batista de Andrade nos mostra como podemos, ao mesmo tempo, identificar-nos com a realidade e não nos prendermos a ela. Seus romances e contos cheiram a terra, sangue, lágrimas e suor, numa perfeita assimilação do mundo que o rodeia, e não obstante rompem os limites desse mundo para elevar-nos à universalidade da poesia humana, inespacial e atemporal. A memória e a ternura são os dois elementos fundamentais dessa alquimia psíquica, os elementos de captação e transfiguração do real, de que João Batista de Andrade se serviu em toda a sua obra, como ficcionista ou não.
Sempre ligado às lutas em prol da cultura brasileira, criou, como Secretário Estadual de Cultura de São Paulo, a Lei da Cultura (PROAC). Eleito Intelectual do Ano em 2014, recebeu o tradicionalíssimo Troféu Juca Pato, oferecido anualmente pela UBE (União Brasileira de Escritores) a uma personalidade do universo cultural cuja obra tenha promovido relevante reflexão, característica marcante da atuação de João Batista de Andrade, quer no cinema, quer na Literatura. Atualmente, preside em São Paulo o Memorial da América Latina.

2º) Álvaro Alves de Faria / "O Tribunal" (romance):

Já em 1971, ano da primeira edição de O tribunal, Álvaro Alves de Faria, com apenas 31 anos de idade (nasceu em São Paulo em 09.02.1942), era considerado “um dos escritores jovens mais conceituados” do Brasil, como informa Durval Monteiro nas orelhas do livro.
Iniciou, em 1965, o movimento de recitais públicos nas ruas e praças de São Paulo, quando lançou o livro O sermão do viaduto, um comício poético em pleno Viaduto do Chá, então o cartão-postal da cidade. Com um microfone e quatro alto-falantes realizou nove recitais no local e essa atividade evidentemente desagradou aos militares que haviam usurpado o poder em 1964.
Em 1966, os recitais poéticos foram proibidos, mas Álvaro Alves de Faria já fora preso cinco vezes como “subversivo” pelo DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social). Voltou a ser preso em 1969, por desenhar os cartazes do então clandestino PSB (Partido Socialista Brasileiro).
Nesse período, firma-se como poeta, ao publicar os seguintes livros: Nocturno maior (1963), Tempo final (1964) e Sermão do viaduto (1965).
Com o fim dos recitais públicos, Álvaro Alves de Faria concentra-se numa intensa atividade poética — que também era essencialmente política — por meio de recitais de poemas em colégios, ginásios e faculdades, e, ao mesmo tempo, vai ruminando novos livros. É dessa época O tribunal, sua primeira incursão pela prosa de ficção. Nas orelhas da 1ª edição, Durval Monteiro, colega de jornalismo e amigo de infância do escritor, informa como se gestou o livro:
“Está aí O tribunal, depois de sete anos de isolamento. (...) Eu vi o livro nascer, crescer dia a dia, palavra por palavra, silêncio por silêncio. Acompanhei todo o trabalho de estruturação deste livro e senti a preocupação terrível de um poeta, de um escritor diante de sua obra, de seu depoimento. E sei que o Álvaro, como homem, como seu próprio personagem, está presente em todos os momentos deste livro. Com seus cabelos compridos (isso é importante?), sua angústia, sua visão profundamente caótica do mundo. Na verdade, eu sei, O tribunal é a opção de Álvaro em relação à própria literatura. É uma palavra de coerência do começo ao fim do livro.”
E o amigo de infância continua: “Ele se propõe (e isso não é novo nele) a ser um escritor marginalizado. Consegue. Ele, tenho certeza, continuará falando das coisas que vivem dentro de si, marginalizado ante o caos do século, numa difícil e jovem linguagem que não ficará perdida na confusão dos nossos dias: ele não está falando sozinho. Estas coisas todas, não é absurdo dizer, serão analisadas mais tarde, à luz da História.”
Álvaro Alves de Faria é um daqueles autores cada vez mais raros, que têm um compromisso com a Literatura. Tem uma “verdade” a dizer. Uma verdade quase toda vivenciada. A tortura e morte são duas personagens que rondaram a sua existência, deixando amargas lembranças, que o artista, com a sua “alma gentil”, procura afastar do caminho. E, para dizer essa verdade, lança mão de todos os recursos e todos os gêneros literários, com o mesmo zelo e profundidade.
O tribunal não é propriamente o que se poderia chamar de “um livro brasileiro”. Poderia ter sido escrito em São Paulo (como o foi), Paris, Tóquio, Nova York ou em qualquer cidade do mundo. Uma coisa universal. É isso que está interessando, conforme disse o próprio escritor ao seu amigo de infância.
Em 1973, lança Quatro cantos de pavor e Alguns poemas desesperados. Também em 1973: Augusto dos Anjos, poeta e cidadão brasileiro (teatro, com Rofran Fernandes, encenada em várias capitais brasileiras).
Em 1976, aparece outra novela, O defunto — uma história brasileira (Ed. Símbolo), mais um texto contundente e visceral, que mostra um tempo de violência e desencanto, de mortes, angústia e desespero, em que o homem é massacrado em cada gesto, sem nenhuma perspectiva diante do clima que então se apresentava no Brasil e no mundo.
Também em 1976 surge a 2ª edição de O tribunal, trazendo o consagrador prefácio de Geraldo Galvão Ferraz, onde este afirma:
“O Tribunal mostra um personagem que avança pelos meandros de uma selva escura, através de barbáries e miséria, lutando pela consolação desse sentimento positivo — o amor. Mas esse internar-se pelo labirinto é elaborado por um espírito penetrante e talentoso, resultando daí esse livro, representativo da melhor literatura que se faz no Brasil. E, mais do que nada, um livro que provoca, perturba e faz pensar. O que pode haver de mais importante numa obra de arte?”
Seguem-se novos livros, em diversos gêneros: Em legítima defesa (poesia/1978), A faca no ventre, (romance/1979), A noiva da avenida Brasil (crônicas/1981), Motivos alheios (poesia/1983),   
Em 1986, com a mesma força de expressão e contundência estilística, retorna ao romance, com Autopsia, editado pela Traço Editora e avalizado com a participação de José Louzeiro, autor do texto de orelhas, onde afirma:
“Mas, afinal, o tema central desta obra do poeta Álvaro Alves de Faria é o homem e suas contradições, angústias e perplexidades, diante de um mundo sem alternativas, de ideias doentes e ferimentos abertos. Esse tempo talvez seja passado, mas é inegável que ainda estão entre nós seus vestígios e essas marcas de muitas feridas abertas na violência, no esmagamento dos direitos fundamentais da vida humana.
O romance nos passa diante dos olhos como um filme sinistro, feito de fatos que, muitas vezes, ultrapassam a própria realidade, para desabar pesadamente onde a vida se torna totalmente impotente diante dos massacres, a impotência ainda lúcida de não se saber o que é a loucura ou a angústia de enlouquecer.
Autópsia é um livro dramático retratando um tempo brasileiro de desespero, com uma linguagem sempre caminhando lado a lado com a poesia. Depois de dez anos, Autópsia salta da gaveta como um dilacerante grito de dor.”
Com efeito, num período da História brasileira em que tanto se precisava ouvir as vozes dos encarcerados e emparedados pela truculência militar, Autópsia, inexplicavelmente (seria mesmo inexplicável?),  permaneceu engavetado por dez anos até que veio a lume, em 1986. E o escritor e jornalista Renato Pompeu (1941-2014), que assinou o prefacio, se pergunta: “Por que o romance de Faria — autor bem conhecido, de vários outros livros — teve dificuldade para ser editado? Seria por ser crítico em face das autoridades? Seria por ser crítico em face dos militantes?” 
 Autópsia é uma poderosa narrativa-documento de um tempo de sombras e de morte, em que insidiosos e cruéis “insetos” se alimentam de carne humana. Os insetos odeiam a luz. A tarde está cheia de insetos e aracnídeos. Mas essa novela de Álvaro Alves de Faria também joga luz sobre o ambiente abafado das redações dos grandes jornais brasileiros, numa época de censura. A morte, com seus múltiplos tentáculos, aniquila corpos e mentes.
A resposta à pergunta de Renato Pompeu salta com força e clareza: Autópsia — “esse romance a um tempo belo e militante” — foi longe demais ao revelar as entranhas de um sistema apodrecido e degenerado e, ao mesmo tempo, manter-se crítico em relação aos que, na sociedade civil manietada, quedaram-se omissos ou rastejantes diante do poder.
Depois disso, publicou os seguintes livros de poesia: Lindas mulheres mortas (1990), O azul irremediável (1992), Pequena antologia poética (1996), Gesto nulo (1998), Agrário (1998), Terminal (1999), 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999). Volta ao romance em 1994: Dias perversos.
Descendente de portugueses e com sua “alma estrangeira”, há quinze anos que se dedica à poesia de Portugal, país onde tem 11 livros publicados: Vinte poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999), Poemas portugueses (2002), Sete anos de pastor (2005), A memória do pai (2006), Inês (2007), Livro de Sophia (2008), Este gosto de sal — mar português (2010), Cartas de abril para Júlia (2010), Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses (2011), O tocador de flauta (2012), Almaflita (2013).
Em 2012, volta a publicar um livro no Brasil (Domitila — poema-romance para a Marquesa de Santos, Ed. Nova Alexandria, SP).
Como jornalista, dedicou-se à área cultural, em especial na crítica literária em jornais, revistas, rádio e televisão. Por seu trabalho recebeu, em 1976 e 1983, o Prêmio Jabuti de Literatura da CBL (Câmara Brasileira do Livro).

3º) Adelto Gonçalves / "Os Vira-Latas da Madrugada" (romance):

Adelto Gonçalves Nasceu a 16.10.1951 em Santos, cidade portuária do Estado de São Paulo, Brasil. Filho de pais de modesta condição, fez os estudos primários na escola mantida pelo Sindicato dos Operários Portuários de Santos. Com a morte do pai, para continuar os estudos, exerceu pequenos ofícios. Em 1972, quando cursava o segundo ano da Faculdade de Comunicação da Universidade Católica de Santos, iniciou, na mesma cidade, bem-sucedida carreira no jornalismo no jornal “Cidade de Santos” e, em seguida, em “A Tribuna”. Em 1975, vai para São Paulo, onde exerce a função de redator na Editoria de Política & Diplomacia em “O Estado de S. Paulo”. Em 1980, retorna a “A Tribuna”, de Santos. Voltou a trabalhar em “O Estado de S. Paulo”, de 1988 a 1992, depois de uma passagem pela “Revista Placar”, da Editora Abril, em 1987, e pela “Folha da Tarde” (SP), em 1988.
Estreou na literatura em 1977, com Mariela morta (contos).
Os vira-latas da madrugada foi escrito quando Adelto Gonçalves tinha 18/19 anos e ficou um bom tempo no fundo da gaveta, até ser reescrito em 1977/78. Em 1980, o romance ganhou Menção Honrosa no Prêmio Nacional José Lins do Rego, da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, e, como resultado da premiação, foi publicado no ano seguinte.
Jornalista, escritor, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP), professor em estabelecimentos do ensino superior e crítico literário, Adelto Gonçalves é, também, autor de vários livros, que vão do ensaio à literatura de ficção. Os vira-latas da madrugada é um capítulo especial em sua bibliografia.
A história se passa às margens do cais santista com personagens que fazem rememorações da época do tenentismo da Coluna Prestes, passam pela Época Vargas e chegam até o período pré-golpe de 1964, onde efetivamente se passa a narração, e tem como pano de fundo a vida sindical. Em primeiro plano, personagens que vivem entre o bairro Paquetá e a zona central da cidade, região decadente, como decadente é a vida dos personagens que por ali deambulam: ex-sindicalistas, punguistas, jornaleiros, vendedores de jogo do bicho, catadores de restos que caem no transporte antes de chegar aos navios, mendigos, engraxates, cafetinas, cafetões, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de expediente. Um dos aspectos surpreendentes do romance é a maneira detida, detalhada e verossímil com que o autor tece o enredo, demonstrando total segurança e grande afinidade com o universo existencial e psicológico dos personagens, isso com apenas 18/19 anos de idade, o que leva o leitor a se perguntar sobre o que teria permitido esse prodígio?
Em artigo publicado pelo semanário “Jornal Opção”, de Goiânia, nº 2021, de 30.03.2014 a 5.04.2014, e no site do jor­nal russo “Pravda” (Verdade), em 25.03.2014, intitulado “O golpe visto da janela de minha casa”, Adelto Gonçalves rememora a tenebrosa época em que escreveu o romance e oferece informações sobre a sua vida que, pelo menos em parte, respondem a essa interrogação.
O escritor diz, nesse artigo, que, com 12 anos de idade, assistiu ao golpe militar de 1964 da janela de sua casa. A morada de seus pais era no Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da janela, o menino Adelto viu como alguns daqueles homens de uniforme azul com metralhadoras em punho e longos bastões — que no cais eram mais conhecidos como “pés de mesa” — escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições estratégicas.
Depois, ouviu o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebeu algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe.
Mais tarde, ainda da janela, o menino percebeu uma aglomeração na Rua General Câmara com o Largo. Então, tomou coragem e desceu à rua e viu quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas e pescoções em direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembra-se de ter visto Manoel de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael Babunovitch, diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários, seriam conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma forca na praça principal de uma pequena cidade.
Adelto diz, ainda, não saber por que aqueles acontecimentos se davam, mas a sua solidariedade era para com aqueles que eram agredidos a caminho do caminhão. Em 1961, havia se formado na escola primária do Sindicato dos Operários Portuários, com 10 anos de idade. Ingressara na escola não porque seu pai trabalhasse na Companhia Docas, mas porque ela ficava perto de casa e um amigo da família, portuário, havia se proposto a apresentá-lo como seu sobrinho, de modo que houve um arranjo para superar as normas, já que a escola, a princípio, só poderia ser cursada por filhos de portuários. E o pai de Adelto era dono de um pequeno armazém de conserto de sacaria de café na Rua Tuiuti, 34, na beira do cais do Valongo.
Adelto saiu daquela escola como um de seus melhores alu­nos. Ao final de 1961, o então presidente da República, João Goulart (1919-1976), fez uma visita ao sindicato e, na ocasião, cumprimentou uns três ou quatro daqueles alunos que haviam recebido medalha de aplicação ou de honra ao mérito. Adelto foi um deles. Diz lembrar-se, até hoje, do cumprimento dado pela mão suarenta do presidente.
Naquele ano de 1964, Adelto Gonçalves cursava o segundo ano ginasial no Colégio Comercial Coelho Neto e assistira, indiferente, à pregação de uma professora que costumava angariar adeptos para as manifestações que a União Cívica Feminina organizava contra o governo Goulart. Até porque não nutria nenhuma simpatia por aquela gente.
Por acaso, também sem sair de casa, o menino Adelto conhecera o prefeito de Santos, José Gomes (1920-1974), que teria o seu mandato cassado depois do golpe: via-o frequentemente cruzar o Largo Teresa Cristina em direção à Rua General Câmara a caminho de seu trabalho na Rádio Cacique, onde apresentava um programa. Certa vez, o prefeito, com seu cabelo ruivo e voz tonitruante, parou à janela do porão da casa de Adelto encantado com a vitalidade de seu cachorro, o Rick, e fez-lhe algumas perguntas a respeito do cão.
Era natural que, anos mais tarde, quando Adelto tinha 17 ou 18 anos de idade e sentou-se para escrever num caderno escolar os primeiros apontamentos para o romance Os vira-latas da madrugada, ainda no porão daquela casa do Largo Teresa Cristina, se sentisse impulsionado por muitas dessas lembranças. Tanto Almeida como Babunovitch, “o homem de bochechas vermelhas” e que “parecia ter uma batata quente na boca quando falava”, são personagens que aparecem disfarçados, ao lado de tantos outros, naquele romance que reescreveu, dez anos mais tarde, à época em que era subeditor de Política na redação do jornal “O Estado de S. Paulo”.
O trabalho, a um tempo de memória e pesquisa, presente em Os vira-latas da madrugada, fez com que o jornalista e escritor Marcos Faerman (1943-1999), professor na tradicional Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, apaixonado pelo “jornalismo literário” e estudioso da relação entre o texto jornalístico e as técnicas narrativas, enquadrasse a obra na categoria “romance-reportagem” e indicasse-a numa lista de cem livros de leitura obrigatória a alunos de jornalismo ou postulantes ao ambicionado mas difícil ofício de “escritor”.
A lista de Marcos Faerman é encabeçada por A sangue frio (Truman Capote) e contempla outras obras-primas da litera­tura universal, como, por exemplo, Honrados mafiosos (Gay Talese, 2º da lista), Décadas púrpuras (Tom Wolfe, 5º), México rebelde (John Reed, 7º), Casa de loucos (João Antonio, 9º).
Os vira-latas da madrugada aparece em 10º lugar nessa lista, antes de clássicos como Moby Dick (Herman Melville, 11º), A ilha do tesouro (Robert Louis Stevenson, 12º), O lobo do mar (Jack London, 13º), Recordação da casa dos mortos (Dostoiévski, 22º), Tempo de morrer (Ernest Hemingway, 27º), Nada de novo no front (Erich Marie Remarch, 28º), A peste (Albert Camus, 29º), As vinhas da ira (John Steinbeck, 34º) e David Corpperfield (Charles Dickens, 37º).
Ainda no texto do “Jornal Opção” e do “Pravda”, Adelto relembra um fato que marcou a publicação da 1ª edição de Os vira-latas da madrugada e que só agora, trinta e quatro anos depois, o público tomará conhecimento do mesmo por inteiro, ganhando esta 2ª edição um significado novo, de verdadeiro ato insurrecto contra a castração das liberdades promovida pelos regimes totalitários — pois, como se verá, o Os vira-latas da madrugada foi uma das tantas vítimas da ditadura militar que à época infelicitava o nosso país.
Vamos ao fato:
Lançado na sede da editora no dia 30 de abril de 1981, juntamente com outras obras premiadas pela comissão julgadora, o livro trazia um prefácio no qual o jornalista Marcos Faerman dizia que aquele “romance de sons delicados e histórias tristes” não agradaria “àqueles que venceram em 1964”. Àquele lançamento coletivo estiveram presentes os ex-ministros Darci Ribeiro (1922-1997) e Eduardo Portela, o compositor Tom Jobim (1927-1994), cuja irmã Helena ganhara o prêmio principal do concurso, e ninguém menos que Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, por sinal, também personagem ocasional de Os vira-latas da madrugada.
Adelto relembra que, naquela noite, “houve uma bomba que explodiu no RioCentro antes da hora e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas vítimas.”
Esse episódio, provavelmente, somado às dificuldades financeiras que puseram a editora sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), foi a causa de a edição ter sido recolhida à gráfica e o livro distribuído sem o prefácio.
Trechos do prefácio de Marcos Faerman foram publicados no semanário “Movimento” (São Paulo, edição de 1 a 7 de junho de 1981, página 15), com o título “Horror na beira do cais” e a seguinte linha final: “Trechos de um prefácio censurado, sobre tempos nublosos...”. Na abertura, em texto que se pode atribuir à redação, lê-se: “O porto de Santos foi palco de grandes manifestações de massa nos anos que precederam a deposição do presidente João Goulart, em 1964, por isso mesmo, assistiu à violenta repressão depois do golpe militar de abril. Essa história constitui o pano de fundo do romance Os vira-latas da madrugada, do jornalista Adelto Gonçalves, recentemente publicado pela Livraria José Olympio Editora. Tudo indica que os acontecimentos posteriores ao golpe militar ainda incomodam aqueles que, de uma forma ou de outra, foram responsáveis por eles. Assim, Os vira-latas da madrugada, publicado por uma editora que está sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), acabou saindo sem o prefácio que fora preparado pelo jornalista Marcos Faerman, embora tenha sido impresso e encadernado normalmente. Ele teria sido proibido por ordem direta do interventor militar na editora, e foi arrancado de todos os exemplares. O prefácio foi vetado por problemas técnicos. Essa foi a explicação do editor Ivan Cavalcanti Proença, que prometeu uma nova edição, em alguns meses, incluindo o prefácio. En­tretanto, apesar de desmentir qualquer conotação política no veto, Proença faz questão de frisar que a José Olympio é uma editora em situação peculiar, insinuando que a intervenção do BNDE não lhe permite total autonomia operacional.”
Como prova da auto-censura, um exemplar com o prefácio “subversivo” foi guardado por Adelto Gonçalves.
Seguindo o ideário ético filosófico de Fernando Pessoa, para quem “a função da arte é revelar o oculto e elevar a alma acima de tudo que é mesquinho”, a LetraSelvagem resolveu reeditar Os vira-latas da madrugada, cuja 1ª edição encontra-se há décadas esgotada, dando às novas gerações de leitores a oportunidade de acesso a essa narrativa realizada com técnica e alma, recolocando em seu merecido lugar o censurado prefácio de Marcos Faerman, o qual, da gaveta onde os inquisidores o sepultaram, clamou para vir à luz, não como explosão de pólvora e chumbo a amedrontar cidadãos indefesos, como fazem as ditaduras, mas como um potente raio, descarga de luz, irretorquível libelo capaz de ferir insensibilidades e despertar consciências.
Adelto Gonçalves é autor, entre outros, de Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Universidade Santa Cecília, 1997, ensaios e artigos), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999, romance; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage — o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003, ensaio biográfico) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012, ensaio biográfico), entre outros. Em 1986, obteve o Prê­mio Fernando Pessoa da Fundação Cultural Brasil-Portugal, do Rio de Janeiro, participando do livro Ensaios sobre Fernando Pessoa com o trabalho “O ideal político de Fernando Pessoa”, publicado também em Fernando Pessoa: a voz de Deus. Conquistou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e Aníbal Freire de 1994, ambos da Academia Brasileira de Letras. Seu traba­lho de doutorado Gonzaga, um poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), publicado em 2000 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios da União Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras.