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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Poeta Maior Francisco Carvalho


   O Poeta Maior Francisco Carvalho
  
                           Por Cyro de Mattos


O poeta Francisco Carvalho, cearense de Russas, despediu-se deste velho mundo aos 86 anos.  Autor de vasta obra, ganhador do Prêmio Bienal Nestlé de Literatura com o livro Quadrante solar (1982), deixa uma herança lírica de altitude incomum na poesia brasileira contemporânea, mesmo que desconhecido pelos dispositivos midiáticos e pela indiferença do circuito editorial dos grandes centros econômicos do país. Dono de uma obra poética de qualidades inquestionáveis, tanto no plano formal como no conteúdo, no poema de lastro clássico ou moderno, de verso extenso ou curto, esse poeta insulado em  Fortaleza mais seria estudado na universidade, reconhecido pela crítica e conhecido do leitor se publicado por editora de circulação nacional, de São Paulo e Rio, centros dinâmicos de um eixo  que  até hoje funciona  como tambor cultural do Brasil.
 
Há quem diga que a melhor poesia produzida  hoje no Brasil está no Nordeste. A afirmação pode soar exagerada, mas deve ser considerada como procedente  com relação a alguns nomes que revelam em sua fatura poética modelar uma produção  da melhor qualidade. Nesse patamar figuram o cearense Francisco Carvalho, em Fortaleza, os baianos Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho e Myriam Fraga em Salvador, Telmo Padilha, Valdelice Soares Pinheiro no Sul da Bahia,  e o pernambucano Marcus Accioly no Recife. Todos eles, sem esforço,   são nomes  que se inserem na pertinência da observação.
 
 O poeta  Francisco Carvalho estreou com Dimensão das Coisas em 1966 e de lá para cá publicou mais de vinte livros de poesia, demonstrando assim sua fidelidade   à “arte de excitar a alma com uma visão do mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem”, conforme definição de Geir Campos, calcada na fusão que o crítico fez das concepções  de Novalis, Eliot e Coleridge sobre a obra literária escrita em verso.
 
            Na antologia Memórias do Espantalho, organizada pelo autor, publicada em 2004, o poeta cearense reuniu em alentado volume poemas escolhidos dos livros Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983), Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Crônica das Raízes (1992), O Tecedor e Sua Trama (1992), Sonata dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Galope de Pégaso (1995), Raízes da Voz (1996), Romance da Nuvem Pássaro (1998), A Concha e o Rumor (2000), O Silêncio é uma Figura Geométrica  (2002) e Centauros Urbanos (2003).
 
        Digo que mantive correspondência saudável durante anos com esse poeta maior, que me ajudava a viver o mundo e transmitia o bem com seus versos. Certamente suas cartas irão enriquecer o volume que pretendo organizar e publicar de  minha correspondência com poetas, escritores e tradutores, e que tem o título provisório de “Barraca de Cartas”. Eu prestei pequena homenagem a esse  poeta maior, dedicando-lhe uma  cantiga de agrado no meu livro Os Enganos cativantes.
 
      Transcrevo a seguir o poema “Meu Verão com Francisco Carvalho”: O sonho sobreviverá/ Enquanto houver um bico/Que cate o alpiste/ Do tácito entendimento,/Leve para outros ares/O som aceso do azul./ Um bico que semeie o amor/ De graça dando a messe justa / Na fazenda livre do ar./ O sonho sobreviverá/ No verso que inventa cores, /Pássaro que resume dores,/ Canto por onde me iludo, /Triste eu me canso de tudo, /Faço-me rouco quadrante solar. Rima do poço da morte, /Vertente da vida sem data / Sendo ilha e desvario,/ Súbito prodígio de luz/ No verão que esparrama/ Pendões debaixo de nuvens/ Como o espírito de Deus./ E sopra sobre as águas/ O eterno de um instante./ O sonho sobreviverá.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Romance "Os Ventos Gemedores" no Pravda de Moscou



Romance “Os Ventos Gemedores” no Pravda de Moscou




Depois de ser publicado em vários sites importantes brasileiros, como Boqnews.com e Campograndenews, o  artigo “Os Ventos Gemedores: Saga  do Brasil Arcaico”, do escritor Adelto Gonçalves, Doutor em Letras pela USP,  sobre o romance “Os Ventos Gemedores”, de  nossa autoria,  foi divulgado  no Pravda de Moscou, na edição em português,  (Port.pravda.ru).

De ritmo ágil, com uma narrativa labiríntica, o romance  “Os Ventos Gemedores” conta a história das dominações de Vulcano Brás, dono de muitas terras no território do Japará, um condado imaginado pelo autor, e a busca da vida livre e justa, representada pelo vaqueiro Genaro. Sobressaem ainda  no conflito, que acontece em ambiente bárbaro, forjado pela  terra hostil,  personagens como Almirinha, Amadeu, Abelardo Pança-Farta, Edivirgem, os irmãos Olindo e Olívio.

O professor e Doutor em Letras pela USP, Adelto Gonçalves, debruça-se sobre o romance e empreende uma análise de natureza  histórico-social, concluindo que “o final deste livro conta a batalha corpo a corpo entre os jagunços de Vulcano Brás e os homens de vaqueiro Genaro e – ao contrário do que normalmente se dá na vida real – a vitória dos explorados, apesar das baixas de lado a lado. A vitória maior, porém, que se registra é da Literatura Brasileira que sai desse romance mais enriquecida.”

Abaixo transcrevemos o artigo “Os Ventos Gemedores:  Saga do Brasil Arcaico”, de Adelto Gonçalves, publicado no Pravda  de Moscou:


'Os ventos gemedores': saga do Brasil arcaico
08.02.2015

'Os ventos gemedores': saga do Brasil arcaico. 21595.jpegAdelto Gonçalves
I
No Brasil, sempre foi assim: a luta pela terra invariavelmente produziu heróis falsos e mártires verdadeiros. E o Estado sempre esteve ao lado dos mais fortes, aqueles que conseguiam pela força subjugar os demais. Para aqueles que venciam, nunca faltou a falsa pena dos escribas para legalizar suas conquistas nos papéis dos cartórios e incensá-los na História. Ainda hoje é assim: os mandões do sertão ganham placas e viram nome de fundações ou de ruas, avenidas ou rodovias. Já para os derrotados sobram - quando muito - uma vala sem lápide e o esquecimento eterno.
Sempre foi assim, desde os tempos dos chamados bandeirantes, homens mestiços, filhos de mães indígenas ou miscigenadas, que largavam tudo na cidade de São Paulo ou em vilas como Santana do Parnaíba e Taubaté para, a partir de Araritaguaba (hoje Porto Feliz), seguirem em canoas à frente de uma legião de índios carijós, mulatos e negros em busca de indígenas que pudessem ser escravizados, de ouro e pedras preciosas e mais terras. Como arrastaram as fronteiras do Brasil para além do Tratado de Tordesilhas, hoje, alguns desses régulos são homenageados com estátuas e monumentos em que aparecem como homens de feições brancas, bem trajados. Provavelmente, seguiam para os sertões descalços e quase semi-nus, como os indígenas  e africanos que comandavam.
  Ainda hoje é assim. Volta e meia, algum parlamentar é acusado de manter trabalhadores sob regime escravo em suas fazendas. De outros dizem que, em suas terras, ninguém entra sem autorização: se alguém entrar, ainda que involuntariamente, será recebido à bala por modernos jagunços bem armados, enquanto o mandão desfila sua onipotência em Brasília ou mesmo em congressos lusófonos em Lisboa. Os mandões modernos já não são grosseiros como os de outros tempos: afáveis, conquistam o interlocutor com muita simpatia e salamaleques.
E, assim, o mundo arcaico convive com o Brasil moderno sem maiores sobressaltos. É esse Brasil arcaico que o leitor vai encontrar no romance Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos (1939), que acaba de ser lançado pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP, em sua coleção Gente Pobre (narrativas). Ambientada nas terras do Sul da Bahia em época que se supõe que seja a de meados do século 20, a trama se dá no condado imaginário de Japará, à la WilliamFaulkner (1897-1962), região onde a mata até então impenetrável começa a dar lugar às primeiras roças de cacau e pastos para bois e vacas. É o cenário de Terras do Sem Fim (1943), clássico romance de Jorge Amado (1912-2001), que, a rigor, inaugura a saga cacaueira do Sul da Bahia.
 

                                               II
Aqui, a luta pela terra coloca, de um lado, Vulcano Brás, um régulo do sertão acostumado a mandar bater e até matar; de outro, o vaqueiro Genaro, escolhido como líder pelos explorados, gente envelhecida precocemente que traz a pele engelhada pelo trabalho de sol a sol. Como Almira, moradora de um casebre, que procura entender, numa espécie de monólogo interior, como o vaqueiro Genaro encontrou coragem para chefiar os homens no levante:
"(...) Ele havia dito que os homens estavam dispostos a enfrentar o despotismo de Vulcano Brás, "não tenha medo, dessa vez, a gente vai tirar o freio da boca, a argola da venta, o chicote das costas e a espora da barriga". Deu-lhe em seguida a notícia de que os homens queriam ele como chefe do levante, ela então teve medo, pensou na morte a espreitar pelos cantos todos eles, de dia e de noite".
Depois, Almira questiona: "Que adianta fazer esta revolta, Genaro? O lado de Vulcano Brás sempre foi mais forte". Mas ele responde "A pior derrota é daquele que não luta", acrescentando que "onde ninguém faz nada contra Vulcano Brás só a vontade dele é a única que impera, e os que se agacham permanecem assim mesmo o tempo inteiro, trabalhando, trabalhando, sem nunca ter nada na vida".
Ainda hoje é assim não só Sul da Bahia, mas em todo o Brasil: aqueles que trabalham na terra só costumam se aposentar aos 65 anos de idade, isso quando conseguem apresentar papelada reconhecida pelos sindicatos rurais que comprove o tempo de trabalho na roça. Para ganhar salário mínimo.
O final deste livro conta a batalha corpo a corpo entre os jagunços de Vulcano Brás e os homens de vaqueiro Genaro e - ao contrário do que normalmente se dá na vida real - a vitória dos explorados, apesar das baixas de lado a lado. A vitória maior, porém, que se registra é da Literatura Brasileira que sai desse romance mais enriquecida.
                                  
                                               III

Nascido em Itabuna, ao Sul da Bahia, Cyro de Mattos conhece bem a região que retratou em seu romance. Foi ali que fez os primeiros estudos, concluindo o curso ginasial no Colégio dos Maristas, em Salvador. Depois, fez o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1962. Hoje, é advogado aposentado, depois de militar durante mais de quatro décadas nas comarcas da região cacaueira na Bahia. Antes, atuou como jornalista no Rio de Janeiro, passando pelas redações do Diário de NotíciasJornal do Comércio e O Jornal.
Contista, ensaísta, cronista e poeta, é autor também de livros de literatura infanto-juvenil e organizador de várias antologias. Já publicou mais de 50 livros e obteve numerosos prêmios literários. O principal foi o Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, para o livro Os Brabos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979), romance elogiado por Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Alceu Amoroso Lima (1893-1983).  
Sua estréia, porém, ocorreu em 1966 com o livro Berro de fogo e outras histórias, em que já se anuncia a sua preocupação em denunciar "a decadente engrenagem econômica cacaueira dominada pelo coronelismo", como observa Nelly Novaes Coelho, professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), autora do posfácio que constitui um texto-homenagem aos 40 anos (1966-2006) da carreira literária do autor. Para a professora, "a obra de Cyro de Mattos já conquistou seu lugar nos quadros da Literatura Brasileira contemporânea".
Cyro de Mattos está incluído na antologia Narradores da América Latina, publicada na Rússia, ao lado do argentino Julio Cortázar (194-1984) e do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), entre outros. Seus poemas foram incluídos na antologia Poesia do Mundo 3, organizada por Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, publicada em Portugal, que teve tradução para o inglês.
Em 2010, participou da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, quando autografou a antologia poética Zwanzig von Rio und andere Gedichte, publicada pela Projekte-Verlag, de Halle, com tradução de Curt Meyer-Clason, tradutor de Guimarães Rosa (1908-1967). E em 2013, esteve presente ao XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Cultural de Salamanca, na Espanha. Tem livros publicados em Portugal, França, Alemanha e Itália.
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Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos. Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 208 págs., R$ 30,00, 2014. Site:www.letraselvagem.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail:marilizadelto@uol.com.br


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015



                                              O Irmão

                                      Por  Cyro de Mattos
                               
De meu pai e minha mãe só tive um  irmão. Nasceu  primeiro.  Mais velho do que eu quase quatro anos. Ninguém melhor do que ele no estilingue. Tinha uma pontaria certeira. Um craque no jogo de futebol. Zé Orlando atuava como lateral esquerdo,  tinha uma perna esquerda de fazer inveja. Sabia como marcar o ponta-direita, anulando-o na partida. Chutava  a bola com precisão  para o gol levando perigo à defesa adversária. 
 Era o meu ídolo. E mais:  o meu protetor. Tirava  satisfação ao menino maior do que eu que me desafiava para brigar no sério. Ele dizia para o menino maior do que eu: “Você não gosta de brigar com um menor do que você e se gabar de porreta, venha enfrentar agora um de seu topete e vamos ver quem ganha.” O menino saia dali no mesmo instante envergonhado, amedrontado. No dia seguinte, deixava de me chamar para brigar no sério quando perdia uma partida de bola de gude e não se conformava com a derrota. De agora em diante, respeitava minhas vitórias em qualquer brincadeira. Não ficava se vingando por ser o derrotado,   mangando naquela cantigazinha,  que me dava raiva:  Ciro, ciroca, nariz de taboca, vendeu a namorada por dez reis de pipoca!”
Gostava de pentear o cabelo com esmero, depois de repartido  com o pente.  O  lado direito ficava maior que o esquerdo.  Alisava o cabelo com brilhantina. Sempre  me pedia que fosse  entregar o bilhete no qual  declarava seu amor para a menina que havia sido a escolhida para ser sua  namorada. Cumpria a missão com gosto, entre compenetrado e alegre.  Quando trazia a resposta por escrito,  a eleita dando  o sinal verde, marcando o primeiro encontro no Cine Itabuna, na matinê de domingo, eu ficava sorrindo de contente. Via na expressão do rosto que o irmão estava satisfeito com a conquista.  
Dizia que não queria outro mensageiro, o mano Cyro  dava-lhe sorte. Eu  me sentia recompensado com as suas palavras de agradecimento. Nem precisava que ele agradecesse.  Prazer eu tinha mesmo era de  levar o bilhete para a eleita e  retornar depois com a resposta dela, afirmando  que o pedido do  irmão para namorar com ela havia sido aceito. 
Tinha acabado de ingressar no primeiro ano do curso ginasial. Na pequena cidade só havia um ginásio. Por isso estudar  no único ginásio da cidade era ser olhado pela  gente importante como um estudante de categoria  especial. Significava que o adolescente conseguia atingir o grau mais avançado como estudante na cidade. O estudante local só  levava desvantagem com relação ao adolescente  que fosse estudar interno em  algum colégio na Capital. As meninas preferiam namorar o adolescente que estava estudando em algum colégio de Salvador.       
Desfilava na cidade exibindo com orgulho o blusão caqui, engomado e bem-passado  pelas cuidadosas mãos maternais.  Bordadas de  azul,  as letras maiúsculas no bolso superior direito do blusão chamavam atenção, pareciam que tinham um brilho diferente. O momento triunfal no desfile  acontecia na matinê do Cine Itabuna antes de começar o filme.
Havia adolescentes  que estudavam no Colégio dos Irmãos  Maristas, outros no Padre Antonio Vieira ou  Salesiano, em Salvador. O irmão fazia parte agora do grupo seleto de estudantes  que estudava na Capital. Não demorou muito que fosse juntar-me a ele no internato do colégio Irmãos Maristas. Anos depois, o pai alugou um apartamento no bairro dos Aflitos. A mãe veio morar nesse apartamento para cuidar dos filhos, que agora cursavam a faculdade. O  irmão formou-se em medicina, diplomei-me em  advocacia.
 De retorno à cidade natal como médico, o irmão tornou-se em pouco tempo um profissional  conceituado.  Eu exercia nessa época, idos de 1963,  a advocacia com boa  clientela. De repente decidi fechar o escritório  e fui morar no Rio. Estava determinado a trabalhar em jornal, no Rio, e, paralelamente, dedicar-me à literatura. Voltei à região apenas para casar  com a moça que conheci numa festa,  em Ibicaraí. Fazia anos que estávamos noivos.
Casado com Mariza, continuei  a exercer  o jornalismo no Rio. Só retornei à cidade natal anos mais tarde para resolver problemas familiares, depois que minha  mãe faleceu. E aqui fiquei em definitivo. Foi então que soube   como  a vida estava  se encarregando de me separar do  irmão. Ah, a vida,  com suas invenções,  difíceis de serem sentidas e compreendidas. 

sábado, 7 de fevereiro de 2015




Os ventos gemedores: saga do Brasil arcaico


Adelto Gonçalves*



I
No Brasil, sempre foi assim: a luta pela terra invariavelmente produziu heróis falsos e mártires verdadeiros. E o Estado sempre esteve ao lado dos mais fortes, aqueles que conseguiam pela força subjugar os demais. Para aqueles que venciam, nunca faltou a falsa pena dos escribas para legalizar suas conquistas nos papéis dos cartórios e incensá-los na História. Ainda hoje é assim: os mandões do sertão ganham placas e viram nome de fundações ou de ruas, avenidas ou rodovias. Já para os derrotados sobram – quando muito – uma vala sem lápide e o esquecimento eterno.
Sempre foi assim, desde os tempos dos chamados bandeirantes, homens mestiços, filhos de mães indígenas ou miscigenadas, que largavam tudo na cidade de São Paulo ou em vilas como Santana do Parnaíba e Taubaté para, a partir de Araritaguaba (hoje Porto Feliz), seguirem em canoas à frente de uma legião de índios carijós, mulatos e negros em busca de indígenas que pudessem ser escravizados, de ouro e pedras preciosas e mais terras. Como arrastaram as fronteiras do Brasil para além do Tratado de Tordesilhas, hoje, alguns desses régulos são homenageados com estátuas e monumentos em que aparecem como homens de feições brancas, bem trajados. Provavelmente, seguiam para os sertões descalços e quase semi-nus, como os indígenas  e africanos que comandavam.
Ainda hoje é assim. Volta e meia, algum parlamentar é acusado de manter trabalhadores sob regime escravo em suas fazendas. De outros dizem que, em suas terras, ninguém entra sem autorização: se alguém entrar, ainda que involuntariamente, será recebido à bala por modernos jagunços bem armados, enquanto o mandão desfila sua onipotência em Brasília ou mesmo em congressos lusófonos em Lisboa. Os mandões modernos já não são grosseiros como os de outros tempos: afáveis, conquistam o interlocutor com muita simpatia e salamaleques.
E, assim, o mundo arcaico convive com o Brasil moderno sem maiores sobressaltos. É esse Brasil arcaico que o leitor vai encontrar no romance Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos (1939), que acaba de ser lançado pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP, em sua coleção Gente Pobre (narrativas). Ambientada nas terras do Sul da Bahia em época que se supõe que seja a de meados do século 20, a trama se dá no condado imaginário de Japará, à la William Faulkner (1897-1962), região onde a mata até então impenetrável começa a dar lugar às primeiras roças de cacau e pastos para bois e vacas. É o cenário de Terras do Sem Fim (1943), clássico romance de Jorge Amado (1912-2001), que, a rigor, inaugura a saga cacaueira do Sul da Bahia.
II
Aqui, a luta pela terra coloca, de um lado, Vulcano Brás, um régulo do sertão acostumado a mandar bater e até matar; de outro, o vaqueiro Genaro, escolhido como líder pelos explorados, gente envelhecida precocemente que traz a pele engelhada pelo trabalho de sol a sol. Como Almira, moradora de um casebre, que procura entender, numa espécie de monólogo interior, como o vaqueiro Genaro encontrou coragem para chefiar os homens no levante:
“(…) Ele havia dito que os homens estavam dispostos a enfrentar o despotismo de Vulcano Brás, “não tenha medo, dessa vez, a gente vai tirar o freio da boca, a argola da venta, o chicote das costas e a espora da barriga”. Deu-lhe em seguida a notícia de que os homens queriam ele como chefe do levante, ela então teve medo, pensou na morte a espreitar pelos cantos todos eles, de dia e de noite”.
Depois, Almira questiona: “Que adianta fazer esta revolta, Genaro? O lado de Vulcano Brás sempre foi mais forte”. Mas ele responde “A pior derrota é daquele que não luta”, acrescentando que “onde ninguém faz nada contra Vulcano Brás só a vontade dele é a única que impera, e os que se agacham permanecem assim mesmo o tempo inteiro, trabalhando, trabalhando, sem nunca ter nada na vida”.
Ainda hoje é assim não só Sul da Bahia, mas em todo o Brasil: aqueles que trabalham na terra só costumam se aposentar aos 65 anos de idade, isso quando conseguem apresentar papelada reconhecida pelos sindicatos rurais que comprove o tempo de trabalho na roça. Para ganhar salário mínimo.
O final deste livro conta a batalha corpo a corpo entre os jagunços de Vulcano Brás e os homens de vaqueiro Genaro e – ao contrário do que normalmente se dá na vida real – a vitória dos explorados, apesar das baixas de lado a lado. A vitória maior, porém, que se registra é da Literatura Brasileira que sai desse romance mais enriquecida.
III
Nascido em Itabuna, ao Sul da Bahia, Cyro de Mattos conhece bem a região que retratou em seu romance. Foi ali que fez os primeiros estudos, concluindo o curso ginasial no Colégio dos Maristas, em Salvador. Depois, fez o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1962. Hoje, é advogado aposentado, depois de militar durante mais de quatro décadas nas comarcas da região cacaueira na Bahia. Antes, atuou como jornalista no Rio de Janeiro, passando pelas redações do Diário de Notícias, Jornal do Comércio e O Jornal.
Contista, ensaísta, cronista e poeta, é autor também de livros de literatura infanto-juvenil e organizador de várias antologias. Já publicou mais de 50 livros e obteve numerosos prêmios literários. O principal foi o Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, para o livro Os Brabos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979), romance elogiado por Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Alceu Amoroso Lima (1893-1983).
Sua estréia, porém, ocorreu em 1966 com o livro Berro de fogo e outras histórias, em que já se anuncia a sua preocupação em denunciar “a decadente engrenagem econômica cacaueira dominada pelo coronelismo”, como observa Nelly Novaes Coelho, professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), autora do posfácio que constitui um texto-homenagem aos 40 anos (1966-2006) da carreira literária do autor. Para a professora, “a obra de Cyro de Mattos já conquistou seu lugar nos quadros da Literatura Brasileira contemporânea”.
Cyro de Mattos está incluído na antologia Narradores da América Latina, publicada na Rússia, ao lado do argentino Julio Cortázar (194-1984) e do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), entre outros. Seus poemas foram incluídos na antologia Poesia do Mundo 3, organizada por Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, publicada em Portugal, que teve tradução para o inglês.
Em 2010, participou da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, quando autografou a antologia poética Zwanzig von Rio und andere Gedichte, publicada pela Projekte-Verlag, de Halle, com tradução de Curt Meyer-Clason, tradutor de Guimarães Rosa (1908-1967). E em 2013, esteve presente ao XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Cultural de Salamanca, na Espanha. Tem livros publicados em Portugal, França, Alemanha e Itália. (Fonte: Portal Boqnews, 4.02.2015)
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Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos. Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 208 págs., R$ 30,00, 2014. Site: www.letraselvagem.com.br
*Adelto Gonçalves  é Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) entre outros.