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sábado, 30 de agosto de 2014

O Fantástico Julio Cortázar

  Filho de argentinos, Julio Cortázar nasceu  na Embaixada da Argentina, em Ixelles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, em 26 de agosto de 1914.  Com quatros anos de idade voltou à terra natal, passando maior parte de sua infância em Banfield. Não foi uma criança feliz. Vivia com freqüência na cama, lendo livros que o faziam mergulhar nas zonas de duendes, de elfos, dando-lhe um sentido de tempo e espaço diferente da realidade em que nós vivemos.  E isso iria influenciar sua obra de contista e romancista.
Em 1935, formou-se Professor em Letras e nessa época costumava frequentar lutas de boxe.   Em 1938, numa edição de 250 exemplares, publicou  Presencia, livro de poemas, sob o pseudônimo Julio Denis. Lecionou em algumas cidades do interior do país, foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia  e Letras da Universidade Nacional de Cuyo. Aos 37 anos, Cortázar, por não concordar com a ditadura na  Argentina, partiu para Paris onde se casou com Aurora Bernárdez,  uma tradutora argentina, em 1953.  Viveram em París sob condições econômicas difíceis.
Em 1959 saiu o volume Final de Jogo,contos. Publicou Histórias de Cronópios e Famas em 1962.  O  ano seguinte  marcou o lançamento de O Jogo da Amarelinha,  seu grande sucesso, que  teve cinco mil exemplares vendidos no mesmo ano
Autor de uma escrita ampla e notável, Julio Cortázar é o escritor mais importante da literatura hispanoamericana, o de maior projeção internacional, ao lado de Jorge Luís Borges. Dono de um texto inovador, inventivo na forma, revolucionário  na estrutura,  que exige um leitor íntimo das questões estéticas ligadas à vanguarda,  sem pressa, oferece em seus livros de contos e romances múltiplas possibilidades de leitura.  O Jogo da Amarelinha  representa para a literatura hispanoamericana o que  Ulisses, de Joyce, significa para a britânica e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para a brasileira. Com Morelli, personagem desse  romance  articulado com várias linguagens, pode-se deduzir  uma teoria romanesca do romance moderno, na qual o escritor argentino não está interessado na narrativa que vai colocando os personagens na situação desenvolvida  linearmente em torno do enredo, mas na que propõe o inverso, instala a situação nos personagens. Com o que estes deixam de serem  personagens para se tornarem pessoas.( p. 438)
 O jogo da Amarelinha apresenta-se com uma divisão tripartida. Na primeira parte vemos o argentino Oliveira em Paris, à procura de Maga, a mulher amada e desaparecida; a segunda tem como espaço  Buenos Aires e o reencontro com Talita. A terceira parte é formada por capítulos sobressalentes, citações e recortes. A leitura pode ser feita sem essas citações, segundo o autor.  O caráter autobiográfico do livro é identificável  com o personagem Oliveira,  um escritor argentino;  através dele o autor empreende a peregrinação interior, na obsessão de questionar  a vida e persegui-la nos seus desvãos  como uma substituição constante de comportamentos.
Cortázar não é apenas um romancista ensaísta, alimentado por ideias, concepções filosóficas e literárias em sua visão da existência e contemplação do homem diante do real cotidiano.  Não é só o escritor ambíguo que constantemente recorre ao informe,  à desordem, ao acaso para extrapolar conteúdos dialéticos, recortes do homem indefinido ante o absoluto.  É também um narrador que comove quando toca nas emoções do amor e deixa escapar sentimentos, que são de todos  nós ante situações adversas, feitas de dor e lágrima.  Isso é visto no trecho da carta do pai ao filho, Bebé Rocamadour,  e em outras passagens de  O Jogo da Amarelinha.
       O realismo de Cortázar por ser mágico desconhece a realidade factual. Seu discurso  está embebido numa atmosfera alucinante,  que se move em vários planos:  consciente, poético, fantástico, inconsciente e humorístico. Embora permaneça  com os elementos que são inerentes ao homem na realidade cotidiana, o mundo projetado de Cortázar decorre  da eterna contradição  entre a razão e a crise, a lógica e o absurdo, o real e o imaginário.
       Diferente do que ocorreu com o romance regionalista latinoamericano, no qual se objetiva com veemência  a humanização  de grandes presenças  telúricas, a selva, o lhano, a zona andina e, no Brasil, as terras nordestinas da cana do açúcar, das secas no agreste, da civilização do cacau no sul da Bahia, o romance contemporâneo  tenta suplantar a visão esquemática do naturalismo. E Cortázar, como em Joyce e Faulkner,  procura mergulhar-nos no mundo em processo, em que a imagem do homem substitui a geografia, o protesto contra as dominações e situações locais  adversas.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              
      Carol Dunlop, sua última esposa, faleceu em 2 de novembro de 1982, o que causou a  Cortázar  uma profunda depressão.  Ele faleceu em 12 de fevereiro de 1984, em Paris, vítima de leucemia.  Em sua tumba se ergue a imagem de um cronópio, personagem criado pelo escritor.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Admirável Ângelo Roberto

                                 Cyro de Mattos

Diante dos desenhos de Ângelo Roberto, baiano de Ibicaraí, radicado em Salvador desde 1948, a primeira impressão que se tem  é de que a vida é ato de amor. Figuradas no real, criaturas simples sugerem o visual cativante através  de uma poetização imaginativa. Mãos e pés enormes não representam detalhes encaixados de maneira inteligente no humano que se pretende figurar. É mesmo o jeito próprio de imaginar o humano em seu excesso de pobreza, a nos atingir com amor em sua simplicidade. Podemos  perceber  isso  na imagem do menino, abraçando o cavalo amigo com todo o calor do coração. Em são Francisco de Assis e seus pássaros que acendem o dia, levando fraternidade pelos quatro cantos cardeais. Ainda na lágrima    da criança triste, riscada no instante do trauma causado  pelo passarinho morto na gaiola.
Ângelo Roberto, como se vê, é um poeta do traço expressivo. A  imaginação rica que possui lateja no drama  como um feixe de nervos numa só ritmação. Sensorial, intensa, sutil nos pontos que o artista sabe imprimir com mestria nas linhas. Nos poros abertos de sua verdade sentida pela vida. Linha, ponto e movimento pulsam com amor ao mesmo tempo, numa só projeção do drama. Flagrado no episódio tendo às vezes a configuração no mais exterior uma significação interna, de dor e cisão súbita feita na existência rústica. Acontece assim a concentração de forças que vibram na expressão oculta do vaqueiro baleado.
Já se disse que poesia é concentração, iluminação do ser e verdade no seio da linguagem plasmada. Então percebemos assim que Ângelo Roberto oferece com freqüência ao desenho momentos de poesia significativa. O gesto simples do artesão por suas criaturas, fraterno e doce tantas vezes nas emoções captadas configura na superfície branca o espírito pontilhado e delineado com o traço leve quando corporifica a matéria. Diríamos que a vida nesse instante flutua ou se flagra naquela zona suspensa do azul, que há muito tempo coabita dentro de nós, naquela aderência mansa de certo clima poético em nossa paisagem íntima.
Vagares de ternura, revelação solidária da tristeza, instante cálido da mulher com  flor no seio. Tudo idealizado por meio de pontos e linhas que determinam  um ritmo suave. Configuram na expressão segura o tema real do imaginário com objetivo de transmitir valores emotivos. Representam com habilidade a arte de riscar uma geometria que se projeta no tempo do viver, do sentir e do amar, para ocupar determinado estado onírico.
Posso dizer que os trabalhos desse artista humaníssimo que é Ângelo Roberto, de rica vocação para o traço poético, mostram outra vez que a Arte é necessidade fundamental da vida como forma de conhecê-la. Concordância de verdade e beleza, vínculo de gravidade e jogo, pode até não ser substitutivo da vida, não tendo mais importância do que comumente lhe é dada. Porém, útil compartilha a solidão, cativante aproxima as criaturas, dá prazer e faz meditar dentro daquele entendimento  tácito, que a vida no ritmo feroz de conflitos e abismos das civilizações atuais é destituída de sentido efetivamente.
Feita com amor e talento, de maneira humaníssima, reveladora do ser na existência, pode não salvar o indivíduo no conturbado lado de animal social, mas é ato que torna a vida suportável, sensível e essencial.
E viver sem ela seria mesmo impossível.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Livro Infantil de Cyro de Mattos  
na Bienal do Livro de São Paulo   




           A Bienal do Livro acontecerá neste ano em São Paulo,  no período de 22 a 31 de agosto, no Pavilhão de Exposições do Anhembi, e terá  mais uma vez a participação da Editora Biruta, que ocupará o Estande G700 no qual apresentará o livro O que eu vi por aí, de Cyro de Mattos, entre os grandes lançamentos do ano.  O livro traz ilustrações vivas e coloridas da polonesa  Marta Ignerska.   
           
        O que eu vi por aí é  a história de uma criança sonhadora passeando pelo mundo. Aquilo que seus olhos enxergam pode se transformar em um cenário  magnífico, onde as ondas do mar são leões com jubas brancas e os raios de sol são as pernas finas e compridas de uma aranha dourada. Indicado para crianças a partir de 8 anos, o autor Cyro de Mattos aproxima os pequenos (e grandes) leitores de um universo mágico e divertido.

       Outros grandes lançamentos do ano da Biruta que estarão na Bienal são O dia em que b apareceu, de Milu Leite, O gigante Maracanã, de Cesar Cardoso, Primavera, de Oskar Lits, Piscina, Já!, de Luiz Antonio Aguiar, Quissamo – o império dos capoeiras, de Maicon Tefen, Como encontrar uma linda princesa, de Ricardo Viveiros, e Poemas para os meus netos, de Vitor Hugo, tradução de Laurent Cardoso.
         

      Considerada a editora dos livros infantojuvenis brasileiros, por oferecer o melhor texto, ilustrações criativas e projetos instigantes, a Editora Biruta promete chamar bastante a atenção das  crianças  na Bienal,  pois criará um ambiente descontraído no seu estande, cheio de figuras coloridas e interativas, levando um pouco dos personagens birutas para mais perto do público. Além disso, promoverá o Concurso  Cultural “Um Mundo sem Livros”, em que a pessoa enviará uma carta para a editora  mostrando  por que não se pode viver sem livro. Cada carta será fixada  em um expositor para no final ser sorteada uma delas, cujo autor receberá como brinde  o livro 2083 da Biruta. 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Romance de Cyro de Mattos Será Lançado na Academia de letras da Bahia




O escritor Cyro de Mattos (baiano de Itabuna) estará lançando o seu primeiro romance, Os ventos gemedores, na Academia de Letras da  Bahia, em Salvador,  no dia 2 de setembro, às 18 horas. O livro é uma publicação da Editora LetrasSelvagem (SP) e traz  posfácio assinado pela  ensaísta Nelly Novaes Coelho, doutora em Letras e professora emérita da USP.

Em Os ventos gemedores, Cyro de Mattos penetra vulcânicos labirintos no coração da terra e  transmuda  o território do sul da Bahia no condado imaginário  do Japará.  Desenvolve nesse território bárbaro  o conflito movido por dramas, ambições, opressões e misérias da terra, vividos pelos por  Vulcano Brás e Edivirgem,  vaqueiro Genaro e    Almirinha,  os irmãos Olindo e Olívio, entre outros personagens marcantes  cujas ações conferem permanência ao romance,  terminada a sua leitura.  

Autor de ampla escrita, entre volumes de contos, novelas, poemas, crônicas e livros infantojuvenis, Cyro de Mattos é publicado em Portugal, Itália, Alemanha e França. Sua obra vem sendo aclamada por escritores e críticos, além de  ter o reconhecimento através dos vários prêmios conquistados pelo autor, no Brasil e no exterior.

        Como prosador e ficcionista publicou para o leitor adulto: Os brabos, contos, Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras; Duas narrativas rústicas, contendo “Inocentes e Selvagens”, Prêmio Internacional Miguel de Cervantes, da Casa dos Quixotes, Rio de Janeiro, e “Coronel, Cacaueiro e Travessia”, Menção Especial no Concurso Internacional de Literatura da Revista Plural, México; Os recuados, contos, Prêmio Leda Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, Prêmio Jorge Amado do Centenário de Ilhéus, Menção Honrosa no Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro; Berro de fogo e outras histórias, Prêmio Nacional de Ficção da Academia Pernambucana de Letras, O mar na Rua Chile, crônicas, Finalista do Prêmio Jabuti;  Alma mais que tudo, crônicas,  O Velho Campo da Desportiva, memórias e crônicas; Um grapiúna em Frankfurt, crônicas, e Natal das crianças negras, narrativa, em cinco idiomas. 

 

domingo, 10 de agosto de 2014

POEMETO DO PAI de Cyro de Mattos


                                         
                                                          Amar/desamar
 absolver/acusar


      Doce-amarga boca,
         humanamente lá e cá.


                                                         Ido rei, ido réu
          noutro verso do vento.


       De repente os gomos
     da vida absorvemos.


                                                        O sal lambemos,
    disso tudo sorrimos.

sábado, 9 de agosto de 2014

JOÃO UBALDO VIVO por Aramis Ribeiro Costa


A avaliação intelectual de João Ubaldo Ribeiro vem sendo feita de forma bastante expressiva desde seu primeiro êxito literário, a novela Sargento Getúlio, ampliando-se grandemente com o monumental  romance Viva o Povo Brasileiro, livro que o consagrou, colocando-o definitivamente no panteão da literatura brasileira, e alargando-se a cada obra lançada no mercado.
Isso deve continuar. A obra completa do autor d’O Albatroz Azul, seu último romance, uma obra-prima cheia de sutilezas e sugestões, integrará para sempre o catálogo daquelas permanentemente visitadas pelos ensaístas, críticos e professores de literatura.
O momento, porém, aqui na Bahia, pelo menos, não é de analisar ou estudar a sua obra, mas de juntar depoimentos de todos aqueles que o conheceram em vida, e que possam trazer aspectos novos, curiosos, mas principalmente esclarecedores dessa personalidade marcante e altamente querida das nossas letras. Em outras palavras: de reconstruir e preservar João Ubaldo, o homem, vivo.
Há muito que dizer e escrever a esse respeito. A prova disso foi a sessão que realizamos na Academia de Letras da Bahia no dia 24 de julho, a primeira sessão ordinária após sua morte, na qual acadêmicos falaram informalmente sobre ele, em depoimentos que deveriam ser escritos, tal a riqueza de informações.
Ouvimos Cyro de Mattos, João Eurico Matta, Ruy Espinheira Filho, Myriam Fraga, Florisvaldo Mattos, Carlos Ribeiro, Evelina Hoisel, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Joaci Góes, numa sessão que foi iniciada  às 17 horas e estendeu-se por duas horas e meia porque de fato  precisávamos terminá-la, já que, pela necessidade de depor e pela emoção dos depoentes, continuaríamos ali, noite adentro, falando dele.
De minha parte, quero testemunhar a alegria e a emoção de João Ubaldo ao ser eleito para a cadeira número nove da Academia de Letras da Bahia. Seu discurso de posse não obedeceu ao protocolo habitual da Academia, que determina a homenagem a todos  os antecessores. Limitou-se a citá-los, detendo-se um pouco em Cláudio Veiga, seu antecessor imediato, que ele conheceu pessoalmente e admirava.
Entretanto, foi uma bela página de declaração de amor à Bahia, e confesso que a considero um dos mais belos discursos de posse que ouvi na ALB com afirmações que me tocaram profundamente, e não apenas a mim, mas a todos que ali estavam naquela noite histórica, e o ouviram dizer, com sua voz grave e cheia, os olhos iluminados pela emoção;
“Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos.”
Uma lição de baianidade, sem dúvida. Mas, sobretudo, uma página de larga compreensão da civilização brasileira, e particularmente do universo misterioso, encantador e singular do povo da Bahia, que escritores como Jorge Amado, Vasconcelos Maia e ele próprio recriam com talento nas suas obras imortais.


*Aramis Ribeiro Costa é ficcionista e poeta. Presidente da Academia de Letras da Bahia. Nessa condição deu posse ao Dr. Marcos Bandeira como presidente da Academia de Letras de Itabuna (ALITA) na sessão solene de instalação, em  5 de novembro de 2011. O discurso que pronunciou, na oportunidade, é histórico. É também membro correspondente da ALITA.   

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão dedicou Sua Vida na Pesquisa dos Mistérios do Universo


Ronaldo Rogério de Freitas Mourão nasceu a 25 de maio de 1935, no Rio de Janeiro. Publicou seus primeiros artigos de divulgação científica na revista Ciência Popular (1952). Entrou em 1956 para a Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), onde obteve, em 1960, os títulos de Bacharel e Licenciado em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras. Astrônomo, escritor, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), da Academia Carioca de Letras, da Academia Luso-Brasileira de Letras. Fundador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Escreveu cerca de l00 livros, entre os quais se destaca: O Livro de Ouro do Universo (Ediouro Publicações SA, 2000). Em janeiro de 1995, foi eleito membro titular do PEN Clube do Brasil pelo conjunto de seus ensaios científicos e literários. Ronaldo Mou-rão faleceu em 25 de julho no Hospital Quinta D'Or, no Rio de Janeiro.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cyro de Mattos no que houve

Cyro de Mattos no que houve
                Henrique Fendrich*

cyrodemattos

É preciso ter vivido muitos anos para saber que a recordação de certos fatos e coisas nada mais é do que saudade da vida que passa com os dias, semanas e meses. As pessoas, bichos, casas e ruas fogem como nuvens, ninguém pode retê-los. Infelizmente. Nesse tempo de mim procuro juntar fragmentos para me suavizar um pouco com essa saudade permeada de fatos, seres e coisas. De longe retorno agora no que houve para latejar sentimentos para mais eu em mim. (Cyro de Mattos)

A introdução da crônica “Esse tempo de mim” bem pode servir como argumento para as outras que compõem “Um Grapiúna em Frankfurt” (Dobra Literatura, 2013), coletânea de Cyro de Mattos, também cronista da RUBEM. Suas crônicas são, justamente, fragmentos em que o escritor, impossibilitado de reter o tempo, suaviza-se através das recordações de histórias e pessoas que lhe marcaram a vida.
Assim é que o cronista revive episódios de uma infância no sul da Bahia, onde os desbravadores e, por extensão, os seus descendentes são chamados de grapiúna (o nome, de origem indígena, pode se referir a uma pequena ave preta que vive às margens do rio ou a um riacho preto, encontrado nas fazendas de cacau da região).
Nesta infância, sem jogos eletrônicos e com ruas pouco movimentadas, quando o trem ainda fazia parte da vida da cidade, Cyro de Mattos se lembra de antigos Natais, dos doces de sua avó Ana, do seu encantamento por Monteiro Lobato, de sua prima Gringa, de um singelo episódio de dor de dente. Mais crescido, o escritor se lembra da Boate ID e, através de uma fotografia amarelecida, recorda-se dos colegas da faculdade de Direito.
Estas são memórias mais pessoais, mas o livro também está recheado de pequenas biografias que contam episódios com personagens locais – às vezes célebres, como o amigo Jorge Amado, às vezes tipos locais, como o doido manso de apelido Jipe. Cyro de Mattos ressalta virtudes e aprendizados que encontrou através dessas convivências, através dessas amizades – e ele tem boas amizades que vêm desde a juventude e outras que nasceram graças ao milagre operado pela literatura.
Nem sempre, é claro, o cronista tem a felicidade de encontrar tipos tão admiráveis. Exemplo disso são os personagens de “Quatro mosqueteiros do mal”, todos tocando forte a clave da vaidade, conforme a metáfora usada pelo escritor em um dos textos mais significativos do livro, a crônica “A negação do outro”.
Embora reconheça que não é um político militante, Cyro de Mattos se diz alguém que teima em dar palavras aos sonhos, como faz em “Utopia dos Palmares”. É também com indignação que comenta a morte do rio de sua cidade enquanto os vereadores não mostram a menor preocupação com o dinheiro público. Em “A cereja do bolo”, faz uma importante defesa da cultura, normalmente vista com miopia pela classe política.
E, não fosse a natureza, é possível que Cyro de Mattos desanimasse de tanto desgosto que encontra o mundo. Mas ele ainda ouve o clarim da garrincha anunciando que a noite chegou ao fim, admira o canto mavioso do sabiá, pergunta-se o que seria de nós se não existissem os passarinhos soltos no embalo festivo da natureza. São pequenos seres que, certamente, também latejam sentimentos para mais Cyro em Cyro.

*Henrique Fendrich é jornalista, editor da revista de crônicas online RUBEM, em homenagem a Rubem Braga