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terça-feira, 25 de março de 2014

FALECEU O EDITOR E POETA RENZO MAZZONE

Faleceu, no dia 13 de março, na Sicilia, Itália, o editor e poeta Renzo Mazzone, diretor da Editora Ila Palma, em Palermo. Residiu vários anos no Brasil, nas décadas de setenta e oitenta, continuando a vir a São Paulo periodicamente, até o final do século. Tinha muita afeição pelo Brasil e aqui, ligando-se particularmente à União Brasileira de Escritores, fez amizades no meio intelectual. Traduziu e publicou muitas obras de escritores e poetas brasileiros, lançando livro de autoria do então Presidente da República – José Sarney – e de autores novos. E através da revista trimestral Spiragli publicava, praticamente em todos os números, poetas e contistas brasileiros.
Embora doente e alcançando os noventa anos de idade não deixava de levar ao italiano trabalhos dos nossos escritores e poetas. Preparava atualmente uma antologia de poetas nacionais, um mapeamento de valores do norte ao sul do País.
A União Brasileira de Escritores promoveu-lhe uma merecida homenagem em sua sede, no dia 18 de setembro de 2013, quando do lançamento do livro de poesias da poetisa Maria de Lourdes Alba (vertido para o italiano) pelo muito que ele fez e continuava fazendo para divulgar, na Itália, a moderna literatura brasileira.
Prometia sempre rever o Brasil, que considerava sua segunda pátria.
A União Brasileira de Escritores, em nome da sua diretoria e associados, registra, com pesar, o falecimento desse editor e poeta italiano, que tanto fez pela divulgação das nossas letras na Itália.
E continua a UBE a manter contato com os herdeiros para que essa vinculação permaneça viva.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Dois Lembretes
Florisvaldo Mattos

  
  O GRANDE SOM ENTRE SURDOS

O artista, poeta e compositor Bené Fonteles publica artigo hoje (A Tarde, Opinião, llA3) de máxima clarividência, amplo conhecimento de técnicas e história musical e maior ainda oportunidade, no qual lamenta não estar vendo ou sentindo qualquer iniciativa de dimensão à altura em comemoração ao centenário de Dorival Caymmi, um ícone da música popular brasileira, de expressão nacional  e internacional  (inicialmente pela voz de Carmen Miranda e dele próprio, e depois de Dick Farney e de um sem-número de intérpretes, inclusive o grande artista da bossa-nova e também baiano, João Gilberto. O texto é um libelo contra as faltas de memória e desídias, público e privada. Cita algo calamitoso que pelo menos a mim me passou, lembrando que “Caymmi não foi homenageado no carnaval deste ano”, e diz desconhecer se “há alguma mostra dedicada a ele, como se fez para Luiz Gonzaga em 2012 no Palacete das Artes”.
Embora em nível com a dimensão merecida, eu sei de uma programação: em agosto, mês de transcurso do centenário de nascimento de Caymmi, serão promovidos na Academia de Letras da Bahia um seminário sobre ele e sua obra e uma cerimônia solene em homenagem  à sua memória. Mas, mesmo reconhecendo a altura desse gesto da ALB, convenhamos que é ainda muito pouco, em face da altitude significativa da data.
Invoco os préstimos de quem bem maneja esses trabeculados de internáutica, que eu, pobre troglodita virtual, não possuo, para tentar reproduzir na íntegra o precioso texto de Fonteles, aqui no Facebook. Como mero antepasto, limito-me a transcrever a sua peroração final, para que se perpetuem as canções e a memória de Caymmi, filho  e obá de Xangô,  para as novas gerações:
“Fazê-lo renascer em nossa memória, recriar de forma instigante e contemporânea suas criações e avivar sua voz forte e original é dever de todos nós”.
Eu completo, parafraseando, um slogan presente em miríades de placas e propagandas de TV:
“Por uma Bahia de todos nós”.  Mesmo cheia de nós, os reais e intrincados...

POETA JACINTA PASSOS

E vem mais aí, não mais um chamamento aos surdos, mas à própria inteligência de arte literária, e espero que, neste caso, os setores públicos não mais se enrosquem em metros de arame farpado. Em novembro, ocorre o centenário da poeta Jacinta Passos (1914-1993), a mais expressiva voz poética da esquerda brasileira, primeiro pondo a sua voz no combate ao nazifascismo e, simultaneamente, por ser figura de proa do Partido Comunista Brasileiro, com vários livros publicados nos anos 40 e depois. É filha de Cruz das Almas (por isso, talvez por lá não a esqueçam). Eu fico a cavaleiro nisso, pois em 1989, quando presidente da Fundação Cultural no governo Waldir Pires, por ingerência dos fados, como disse em um artigo, empenhei-me pela reedição de seu principal livro "Canção da Partida", de 1945, e estava totalmente esquecido, com uma poesia que falava diretamente, em nível lírico, aos sentimentos populares. É hora de o pessoal se movimentar para render homenagem à memória dessa grande poeta, pioneira da poesia feminina de esquerda no Brasil.


sexta-feira, 21 de março de 2014

       Copa do Mundo 70

                    Carlos Drummond de Andrade
I

Meu Coração no México


Meu coração não joga nem conhece
as artes de jogar. Bate distante
da bola nos estádios, que alucina
o torcedor, escravo de seu clube.
Vive comigo, e em mim, os meus cuidados.
Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho:
Que é do meu coração? Está no México,
voou certeiro, sem me consultar,
instalou-s, discreto, num cantinho
qualquer, entre bandeiras tremulantes,
microfones, charangas, ovações.,
e de repente, sem que eu mesmo saiba
como ficou assim, ele se exalta
e vira coração de torcedor,
torce, retorce e se destorce todo,
grita: Brasil! Com fúria e com amor.


II

O Momento Feliz

Com o arremesso das feras
e o cálculo das formigas
a seleção avança
negaceia
recua
envolve.
É longe e em mim.
Sou o estádio de Jalisco, triturado
de chuteiras, a grama sofredora
a bola mosqueada e caprichosa
Assistir? Não assisto. Estou jogando.
No baralho de gestos, na maranha
na contusão da coxa
na dor do gol perdido
na volta do relógio e na linha de sombra
que vai crescendo e esse tento não vem
ou vem mas é contrário... e se renova
em lenta lesma de replay.
Eu não merecia ser varado
por esse tiro frouxo  sem destino.
Meus onze atletas
são onze meninos fustigados
por um deus fútil que comanda a sorte.
É preciso lutar contra o deus fútil,
fazer tudo de novo: formiguinha
rasgando seu caminho na espessura
do cimento do muro.

Então crescem os homens. Cada um
é toda a luta, sério. E é todo  arte.
Uma geometria astuciosa
aérea, musical, de corpos sábios
a se entenderem, membros polifônicos
de um corpo só, belo e suado. Rio,
rio de dor feliz, recompensada
com Tostão a criar  e Jair terminando
A fecunda jogada.

É gooooooooool  na garganta florida
rouca exausta. Gol no peito meu aberto
goll na minha rua nos terraços
Nos bares nas bandeiras nos morteiros
gol
na girandolarrugem das girândolas gol
na chuva de papeizinhos  celebrando
por conta própria do ar: cada papel,
riso de dança distribuído
pelo país inteiro em festa de abraçar
e beijar e cantar
e gol legal é gol natal é gol de mel e sol.

Ninguém me prende mais, jogo por mil
jogo em Pelé o sempre rei republicano
o povo feito atleta na poesia
do jogo mágico.
Sou Rivelino, a lâmina do nome
cobrando fina, a falta.
Sou Clodoaldo rima com Everaldo.
Sou Brito e sua viva cabeçada,
cm Gerson e Piazza  me acrescento
de forças novas. Com orgulho certo
me faço capitão Carlos Alberto.
Félix, defendo  e abarco
em meu abraço a bola e salvo o arco.

Como foi que  esquentou assim o jogo?
Que energias dobradas afloraram
do banco de reservas interiores?
Um rio passa em mim ou sou  o mar atlântico
passando pela cancha e se espraiando
por toda a minha gente reunida
num só vídeo, infinito, num ser único?

De repente o Brasil ficou unido
contente de existir, trocando a morte
o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste
por um momento puro de grandeza
E afirmação no esporte.
Vencer com honra e graça
com beleza e humildade
é  ser maduro e merecer a vida,
ato de criação, ato de amor.
A Zagalo, zagal prudente
e a seus homens de campo e bastidor
fica devendo a minha gente
este minuto de felicidade.

sábado, 15 de março de 2014


                        Gente Pobre de Dostoievski
                          
                           (Cyro de Mattos)
             
            Dostoievski era homem da cidade, um intelectual pequeno-burguês, que possuía  uma alma espiritualista ligada à interpelação da vida sob as manifestações do bem e do  mal. Nessa dicotomia religiosa era que concebia os caminhos de uma libertação com base  no evangelho e nas visões filosóficas de um cristianismo angustiado. Segundo Otto Maria Carpeaux, “a sua obra inteira é um protesto apaixonado contra o determinismo que lhe parecia o fundamento do materialismo ateu.” (Conf. História da Literatura Ocidental, V, pág. 2532)       
         Gente Pobre, romance de estreia de Dostoievski, foi considerado o  primeiro romance social da literatura russa. O livro causou sensação no meio literário e cedo trouxe a glória ao autor, que  passou a fazer amigos com gente da alta sociedade. As obras que vieram depois de Gente Pobre foram consideradas de nível inferior: O Sósia, A Hospedeira e O Senhor Prokharttchine.
        Em Gente Pobre, os primeiros passos de um escritor com uma arte voltada para o psicologismo das camadas  inferiores transitam por entre as pulsações que exprimem a aflição e a humilhação de uma gente infortunada. Nesse romance de autor estreante   é percebido, em  nível expressivo de criação literária, uma das tônicas da ficção que Dostoievski iria desenvolver ao longo de sua obra,  associada ao que há de dramático e sofrido no curso doloroso da vida. Na inventiva do jovem romancista,  aflora o sofrimento de uns pobres diabos participando  de um cenário retirado de um dos bairros miseráveis de São  Petersburgo.
         Ficou bastante  conhecido  o que disse Dostoievski ao jovem Merejekowski, de quinze anos, que ao lhe visitar  leu seus versos: “Para escrever bem, é preciso sofrer, sofrer.” Dostoievski sempre soube que dor é vida, os outros sofriam como ele porque todos estavam na vida. Certa vez, na voz de um de seus personagens, chegou a  um desabafo quando disse que lá embaixo, na outra terra, não podemos amar senão com dor, e somente através da dor.
         Este sofrimento integral conheceu Dostoievski em longa pena de trabalhos forçados, durante os  anos  que passou  na prisão da Sibéria, quando então teve conhecimento pela primeira vez de  todo tipo de criminoso. Experimentou  nas regiões infernais do jogo, na danação das dívidas, na falência, na humilhação, na doença da epilepsia, nas desilusões de uma vida amorosa, nas verdades pessimistas  que iriam formar seu espírito inquieto e atormentado, inclinando-o, na progressão de sua obra,  às auscultações místicas, à exacerbação do  psicológico e ao credo permanente na Arte.                                    
        Gente Pobre é um romance de estrutura simples com uma narrativa também de fácil apreensão. Descreve o que são  os dias de desalento vividos pelo funcionário Makar, um homem de meia-idade, e Varvara, moça desonrada e órfã.  Dostoievski faz uso da troca de cartas entre os dois personagens para que a vida como um espelho reflita o comportamento afetivo de duas criaturas tristes,  quase na indigência. Informa assim na aparente superfície das coisas  sobre duas vidas no infortúnio,  conscientes de que o pior era  viver na incerteza, sem saber nada do que seria deles em seu estado de penúria.
        As camadas superiores na Rússia desse tempo seguiam um ritual que anunciava  as pessoas vestidas em indumentária nobre, fazendo questão que fossem notadas  seu brilho no exercício dos privilégios. Era importante nas pessoas esse brilho quando  compareciam aos grandes e pequenos  acontecimentos. Marginalidade, pobreza, força do destino determinado por Deus, sobre todos esses parâmetros, fazem com que Dostoievski realize a cortante incursão na alma humana para transmitir nas entrelinhas as profundidades de um imoralismo social.  Longe de ser  panfletário, muito menos de ter uma escrita política afastada do estético, em Gente Pobre já acontece um Dostoievski imbuído daquela percepção de que a arte se torna plena de significados quando comprometida  com as verdades essenciais da vida, combinando as feridas sociais com as atribulações da alma, Sem dor e solidão, angústia e outros males da alma,   torna-se um produto fútil, que alimenta  vaidades e faz o elogio do ornamento.     

domingo, 2 de março de 2014

O Poeta Menelau

              Ainda não conhecia o fundador da Confraria dos Poetas de Burundanga. Exercia o mandato de presidente pela décima vez, sempre eleito por aclamação. Também com ele a regra era seguida à risca, só era poeta quem pertencesse ao ilustre quadro de membros efetivos da confraria.  Quem não tivesse o salvo-conduto, não imaginasse ser considerado como um verdadeiro poeta.
Era de estatura pequena, pescoço grosso, cabeça grande. Dentuço e nervoso. Tinha o sestro de sacudir a cabeça várias vezes quando estava dizendo um poema. Era amigo do prefeito, para quem  dedicava sempre dois ou três poemas no dia de seu aniversário. Assinava uma coluna no Diário da Burundanga na qual comentava livros de poesia, apenas os volumes dos confrades. Contente, ali era um espaço ideal para publicar seus comentários literários ou  poesia de dez a vinte estrofes. O que não deixava de ser uma boa oportunidade para disseminar sua glória, quase dizia vaidade, mas isso não calhava com seus brios de poeta talentoso, segundo ele.
 Gostava muito de fazer poemas longos, curtos só os de circunstância. Detestava o hai-cai, coisa insignificante, de poeta minimalista, sem inspiração, habilidade no estro, alienado, cultor de fórmulas orientais para  compor o verso. De outras gentes que nada tinham a ver com a magnífica poesia cultivada por ele e os poucos leitores, que eram os mesmos integrantes da confraria.   
Quando se dirigisse a ele, só admitia que fosse chamado  poetão Menelau. Vá lá, poetastro, nada de poeta ou poetinha, isso não condizia com a grandeza de seu estro, que tinha como marca supimpa as rimas mais instigantes. Por exemplo, coração com mamão, tesouro com besouro, presepada com batucada, cachoeira com besteira, facão  com anunciação, porrete com macete, camaradagem com garagem, alegria com pirataria, jereré com pontapé.
Estava abastecendo o carro com gasolina no posto. De súbito apareceu aquela cabeça grande na janela do motorista, os olhos rutilantes como se quisessem saltar do rosto ossudo.
Disse com entusiasmo:
-  Soube que você publicou um livro de poesia na França.
- Sim – eu disse.
Emendou sem pestanejar:
- Mas isso não é a glória. Não é trunfo para se achar  um verdadeiro poeta.
Meio assustado, disse que a glória não me preocupava. A imortalidade era uma fórmula usada pelos membros de uma academia.        
- Você precisa aparecer lá na confraria dos poetas da terra, retornou e insistiu na lembrança. - Precisa se filiar ao grupo. Se não tiver em nosso meio, nem se considere poeta.
E recitou o que ele chamava do mais recente poema de sua imbatível inspiração. Uma zorra com versos que rimavam coração com cheiro de manjericão, pele morena com embriaguez serena, e por aí seguia. Informou que os versos candentes desse poema ou o que fosse lá o que fosse tinha inspiração na sua bela Aurora, mulher,  companheira e eterna musa.
        -  Quer ouvir outro poema?
        Comecei a suar, apressando-me  em ligar o carro para  me livrar das investidas poéticas do Menelau.  Para sorte minha, ouvi o frentista dizer, no outro lado,  para que ele tirasse seu carro, que o tanque já estava cheio. Ele não deu ouvido. Começou a dizer outro poema, apesar de meu conselho para que fosse tirar o seu carro, o frentista já estava irritado de tanto pedir isso, tinha gente na fila querendo abastecer o veículo.  Foi o que me salvou. O poeta Menelau, o grande, antes que me esqueça, saiu chateado com aquela inconveniente interrupção à sua elevada dicção para soltar a verve,  que emergia, naquele instante, do encontro não marcado com um simples fazedor de versos.
         O poeta Menelau ainda lembrou antes de sair:
          - Apareça lá na confraria dos poetas.
          E arrematou com o peito cheio e cabeça nervosa:
          - Junte-se a nós e vá em frente como um verdadeiro poeta.