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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Carnaval
                                                         
                  O carnaval no Rio de Janeiro não é o mesmo de Olinda, Recife, Salvador e outras cidades brasileiras. Conservando o elemento comum que os une, a participação coletiva que irrompe na maior felicidade, o Carnaval no Rio tem na escola de samba sua marca pessoal. Na ópera popular, que se exibe na passarela do asfalto, desfilam passistas, ritmistas, fantasias, carros com alegoria,  samba enredo, bateria com um grande número de figurantes, alas de baianas e comissões de frete. Aparecem figurações diversas que, em sua feição de cores e luxo, impressionam vivamente. Deslumbram. Arrancam palmas da plateia. A vida dança ritmos ardentes, solta desvairadas vibrações do corpo, canto e prazeres numa maravilhosa ventura em torno do sonho. Em Olinda e Recife, bonecos gigantescos arrastam multidões sob o ritmo rápido do frevo. Passistas improvisam uma coreografia individual e frenética.
           Ao fechar o banco, o escritório, a indústria, o comércio, o Carnaval é sempre o mesmo. Com a sua máquina de fazer alegria, inventar o êxtase e o riso, varre as formas de viver do mundo rotineiro, trazendo ventos da utopia  para empurrar a onda humana que canta e pula na avenida. Em Salvador, com ou sem turista, dinheiro ou sem dinheiro, vibra na tanga do índio, na mortalha suada da moça, vocifera, trepida ao som do trio elétrico, mexe, remexe sob a nova dinâmica dos ritmos negros. Suaviza a vida quando passa numa onda mística com o bloco “Filhos de Ghandi”. Serve de extroversão a milhares de pessoas e de fuga aos que preferem à casa de praia ou de campo.
      Não se pode deixar de considerar que o Carnaval ativa o comércio informal.  É a oportunidade que muitos encontram para ganhar um dinheirinho e sobreviver na dura lei da vida. Na quarta-feira de cinzas, quando o coral frenético silencia, o Carnaval oferece a muitas pessoas uma oportunidade de ganhar o sustento nessa incrível arte da sobrevivência. Dezenas  nesse Brasil tropical e carnavalesco estão a postos para limpar o lixo da euforia.
      O Carnaval de Itabuna já foi o melhor do sul da Bahia durante muito tempo. Não acontece há anos. Autoridades argumentam que nessa época o surto de dengue é grande nos bairros carentes da cidade,  os recursos públicos  que seriam  fornecidos para animar  a festa devem ser  destinados para debelar, controlar ou atenuar   o surto da doença infecciosa,  que em alguns casos resulta em morte.
     Várias administrações municipais não vêm conseguindo derrotar ou pelo menos enfraquecer em níveis aceitáveis o surto da dengue nessa época, através da execução de um programa eficiente no setor da saúde comunitária, Assim, o Carnaval, que não é responsável pela dengue, é impedido de acontecer em nossa cidade. De onda eufórica para liberar a adrenalina passa a ser um vilão vil e repelente.  Nessa época, quando o Brasil usufrui uma de suas grandes paixões populares, o folião itabunense é jogado para escanteio. Fica a ver navios.  Tem como consolo  acompanhar a festa no Rio, Salvador e outras localidades pela telinha da televisão.
         Mais uma vez esse folião vibrante, antigo dono do pedaço quando passava e agitava na euforia, vai saber que na sua cidade não acontece nada no Carnaval, Nesses dias, a tristeza ganha da alegria.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Passeio pela Espanha

                                          (Cyro de Mattos)
           
            A estrada bem sinalizada nas curvas, encostas e cruzamentos. O ônibus desliza no asfalto, tem a maciez de um colchão. Dá sono esta viagem que atravessa planícies, uma paz que suaviza a alma. Campos de trigo como imensos lençóis até a curva do horizonte.   Uma família portuguesa, com certeza de classe média, rostos de cada um até certo ponto afável, ocupa poltronas  perto  da minha.  Um casal de velhos puxa conversa para saber o que aconteceu com o avião seqüestrado depois de decolar no aeroporto de Nova Iorque, levando cento e cinqüenta passageiros. O velho ouviu a notícia no quarto, estava arrumando a mala para a excursão a Madri. Plantão da TV Planeta.  A velha, com veias grossas nas mãos magras, cabelos alvos e sedosos, disse que o avião explodiu sobre o oceano. A mãe do menino põe  a mão na boca horrorizada. Santo Deus, que barbaridade! (o pai do menino).
            O ônibus faz a segunda parada nas imediações de Toledo. Trinta minutos para apreciarmos a cidade ali do alto. Da balaustrada podemos tirar fotos e filmar. No retorno de Madri, vamos conhecer Toledo por dentro. Puerta Bisagra, Castillo Visigodo, Calle de Santa Isabel, Casa del Greco, a Catedral famosa e outros locais importantes. O guia anuncia com sua voz ligeira. Alguns não escutaram direito o que a voz nervosa dele  acabou de dizer. Pedem para ele repetir, devagar, por favor. Toledo é um museu a céu aberto, você vai ver isso, o passado chegando da Idade Média em silêncio, a mulher de olhos azuis diz para o homem de cabelos cor de ouro, nariz comprido no rosto com o queixo saliente. A cidade foi construída sobre uma grande rocha, lá embaixo o rio contornando-a e seguindo com a sua enorme cobra grossa. Estratégia perfeita montada com a ajuda da natureza para impedir a invasão das hordas inimigas. A entrada da cidade fica lá em cima, no topo da rocha. Chega-se à grande porta atravessando por uma ponte sobre o fosso de garganta escura.
            Distante dos outros, numa das extremidades da balaustrada. Calado, arredio.   Espio as casinhas lá embaixo, próximas ao rio, num dos lados em que circunda a rocha. O guia informa que só podem ser construídas com a mesma arquitetura dos tempos medievais. De longe observo Toledo. Visão que se mistura com a sensação de uma fortaleza impenetrável, muralhas altas, circulando a cidade, construídas sobre o topo da rocha.  Torres dentadas onde outrora ficaram sentinelas, na ronda com espada e lança.  Noites expectantes sob a dura vigília à espreita da morte.
            O  ônibus cruza a Puerta d´Alcalar, em Madri. Ao desembarcar sigo atrás  dos outros turistas, que em grupos estão entrando no Hotel Washington, na Gran Via de Madri. O guia recomenda que só vamos ter  cinqüenta  minutos para descermos até o salão de refeição, fica  no primeiro andar do hotel. Entrega a cada um de nós  o cartão magnético, ensina como deve ser enfiado na fenda da porta do apartamento para abri-la. Ao ser enfiado na porta, o lado da tarjeta para baixo. Cuidado para não esquecer o cartão magnético enfiado na porta quando sair. Convite para o ladrão entrar no apartamento e ganhar o dia fácil (risos).
            Ficaria sem fazer a refeição do jantar, se não chamasse  o chefe dos garçons para saber o que estava acontecendo. Ali sozinho na mesa do canto, vendo os outros deglutir a sopa: são servidos com atenção especial por dois garçons que parecem irmãos  gêmeos. “Levo o caso para a Embaixada do Brasil para as providências legais”. Impaciente, voz um pouco alterada, absurdo o tratamento que estão me  dando. “Por favor, senhor, está havendo um mal entendido”, calmo o chefe dos garçons, “num instante o senhor será servido.” Um português de fala fina, o chefe dos garçons,  impecavelmente vestido no uniforme do hotel, cor de vinho.  O nome do hotel com letras douradas no bolso superior do paletó. Incumbe um dos garçons para me servir imediatamente.
O guia reúne todos no salão de recepção do restaurante, ao lado do salão de refeições. Vamos dar um breve passeio pelo centro da cidade agora à noite. Fontes de Cibelis e Netuno, Porta do Sol, Praça da Espanha, passaremos em frente ao Palácio Real. Após a refeição matinal, amanhã, às 8,30 horas, todos na recepção do hotel. Pela manhã, passeio no Parque do Retiro e, à tarde, Praça Maior. À noite, como opção conhecer o flamenco, a dança e a música que apresentam chamas. Despesas no teatro por conta de cada  um de vocês, diz o guia.        
       Depois de três dias visitando outros locais importantes em Madri, o ônibus retorna a Lisboa de manhã cedo. Começa a subir a Grande Via, durante o dia com muito movimento de carros. O ônibus deixa para trás ruas com os vultos de pessoas andando pelos passeios. O roteiro no retorno da Excursão Eldorado indica parada no Vale dos Caídos, visita à monumental Salamanca e à admirável Toledo. No retorno,  como aconteceu na ida, continuo na excursão como um desconhecido, que viaja em silêncio. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

                   Um Torcedor Especial
                                                (Cyro de Mattos)

O telefone toca na sala.
A mulher atende.
- Quem é?
- Luís Fernando.
-Diga meu neto.
- Quero falar com vô.
Da sala a voz forte da mulher para o vô no gabinete:
- É seu neto, quer falar com você.
- Já vou.
No telefone:
- O que foi, meu neto ?
- Vô, você está triste?
- Triste de quê?
- O seu Vasco perdeu para o Atlético Paranaense.
- De goleada e desceu para a segunda divisão.
- Cada gol que o Vasco tomava eu me lembrava do meu vô.
- Mas você não é Vasco, e, sim, Flamengo,  como  seu pai.
- Sou mesmo, uma vez Flamengo sempre Flamengo, Flamengo sempre hei de ser, até morrer, mas fiquei triste e chorei. Preocupado com a derrota do Vasco e a tristeza do vô.
- A vida é assim mesmo, um perde e ganha. Quando o Vasco voltar para a primeira divisão, vai cruzar com o  seu Flamengo e aí tudo volta com antes: vamos ver qual é o melhor dos dois times, se o seu  mengão ou meu vascão.
- Está certo, vô.
- E não chore mais. Tenho certeza que meu Vasco voltará à primeira divisão no próximo ano. Vai ganhar de todos os 19 times da segunda divisão. Vai dar a volta por cima e, na primeirona, não tem pra ninguém.
- Tomara, vô!
Foi bom o Vasco perder aquela última partida.
Descer para a segunda divisão.
Descobriu que o neto era o melhor torcedor deste planeta. Especial, muito especial. Não havia outro igual.      

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ginásio dos Meus Verdes Anos



( Cyro de Mattos)


O grande sonho dos estudantes de meu tempo era concluir o curso primário e, submetidos ao exame de admissão, ingressar no ginásio. Ser aluno do Ginásio Divina Providência era a maior glória. Significava pertencer a uma classe privilegiada de estudantes, motivo de orgulho dos pais e ser admirado por pessoas importantes. Ginásio de meninos e meninas como nuvens. Aquelas mesmas nuvens que acompanham a criatura humana em seus primeiros passos. Juntos queriam construir o futuro. Queriam melhorar de nível, atingir metas e entender o mundo. Buscavam arma e bagagem para um dia tornar a vida rica de significados. Por isso suportavam o massacre diário, com exercícios aritméticos, lições de português, ciências naturais, geografia e história.

Era um tempo de desafio constante povoado de sombras. Tempo que ia passando com uma pesada carga de estudos. Noites de expectativa, alegria e susto quando chegava ao fim do ano. Havia em nosso ginásio professores com a sua maneira de ser rigorosa, como Nivaldo Rebouças, que ensinava inglês, e Odete Midlej, português. Havia também os de coração de açúcar, como Helena Borborema, Padre Nestor, Lode Hage e “Seu” Queirós. Professores responsáveis que não faltavam aula durante o ano, deixando nas lições sem disfarce a palavra fluir com dedicação e competência. Professores que, na voz tolerante, rigorosa ou paciente, faziam que os alunos amassem ou respeitassem o ginásio.  

Ginásio dos meus verdes anos. Dos meninos Roland, Rafael e Nilton Gago. Das meninas Yeda, Ritinha e Mary Kalid. Dos advogados Joel, Eraldo, Gervásio  e Rui Fontes. Do engenheiro Dagô. Dos médicos Moacir Oliveira, Euvaldo Mattos, José Rebouças, Antonio  Menezes, João Otávio e José Orlando. Do escrivão Ronald Cravo, delegado Péricles e juíza Sônia Carvalho Maron. Do deputado Jorginho Hage e prefeito Ubaldo Dantas. Do gringo Marcel Midlej. Das piadas inesquecíveis de Nilton Jega Preta. Dos namorados Carlos Euvaldo e Clotildes, Neviton e Marilene. Do goleiro Edsel e Chico, o craque. Do odontólogo Cleres Franco. Dos Irmãos Ildo, Eudes,  Uraci e Ovaci. Dos artistas plásticos Bebeto e Renart. Dos que já não estão mais na sala, se foram cedo na viagem sem volta. João Berbert, Alberto Simões, Valter Delmondes, Vadinho. Valter Delmondes saltou da pequena ponte para as profundezas de águas escuras. Aquela sombra que infunde medo instalou-se nas salas do ginásio. Pela primeira vez, solitário, eu indagava sobre a escuridão daquelas águas traiçoeiras.

Setembro tinha sentido com a cor do desfile no ar verde e amarelo. Tambores uníssonos, compenetrados do toque, rufavam a pátria amada. Marcha cívica ou efervescente música na pele de adolescentes com a alma de girassóis flamantes? Nem o aguaceiro que despencou de repente conseguiu tirar o brilho de um escudo glorioso sob os passos encharcados de sonho.    

 Ginásio de velhas brincadeiras em vozes tão novas. Dona Lindaura, a diretora, certa vez me disse que o Colégio Divina Providência foi fundado pela Sociedade São Vicente de Paulo, em 1924. Anos depois, o ginásio começou a ser administrado pelas irmãs de caridade. Criatura de estatura pequena, cabelos brancos e ralos, a diretora do ginásio seguia nos passos firmes todos os dias rumo ao antigo sobrado da Rua São Vicente de Paulo. Da primeira lição que ela me ensinou, nunca esqueci. Disse que para alguém ser gente na vida precisava conviver com o hábito do estudo. Ser gente era munir de saber a idéia.

Nesse tempo a cidade pequena escorregava na lama do inverno. Os alunos passavam a conhecer  que as sementes boas do estudo para munir a ideia estavam no primeiro ginásio da cidade. Colheitas desse saber foram realizadas em pouco tempo. Com o passar dos anos, para orgulho dos pais, tornaram-se constantes. Produziriam rimas ricas.



                                        ITABUNA E SEUS MITOS
                                                                 Sônia Carvalho de Almeida Maron*


            Na edição do dia 4 do corrente mês, o Diário Bahia prestou justa homenagem ao cidadão desta cidade, Alencar Pereira, mais conhecido como “Caboclo Alencar”. Pequeno comerciante e proprietário do barzinho “ABC da Noite”, no Beco do Fuxico, há muitas décadas mantém o ponto de encontro de boêmios, intelectuais, comerciantes, empresários, enfim, representantes de todos os segmentos sociais, anônimos e celebridades, que apreciam a “batida”  mais famosa da Bahia. O bom papo e a atração irresistível do inteligente, bem humorado e filósofo da faculdade da vida, apelidado Caboclo Alencar, que assegura o pão de cada dia com a exibição do conhecimento de historiador autodidata  e analista sociopolítico, mantém, durante décadas, a admiração dos freqüentadores do seu bar pelo carisma e comentários próprios de um humorista de escol. Eu sei por ouvir dizer, expressão usada para as testemunhas não presenciais. As garotas dos “anos dourados” não frequentavam barzinhos especializados em batidas, entretenimento reservado aos rapazes. As informações fidedignas eu obtive, pela vida a fora, de Nilton Galvão Pinto, amigo de infância e vizinho da rua Rui Barbosa, e Huldo Baldoino, itabunense que passou a residir no Rio Grande do Sul e visitava a família nas férias, reservando, como verdadeiro ritual, um tempo para visitar o Caboclo Alencar. Logo, temos amigos comuns.
            A comemoração dos 83 anos do itabunense famoso e singular, marcada pelo carinho dos incontáveis amigos reunidos no Beco do Fuxico, foi consagrada pela matéria primorosa deste jornal, com direito à chamada de primeira página  e a marca inconfundível  da redatora Celina Santos. Registre-se, ainda, por conta das comemorações, o documentário exibido pela TV Itabuna, no qual a competência e sensibilidade de Barbosa Filho reuniu intelectuais de todos os matizes, jornalistas, advogados, pessoas do povo, um delicado mosaico de celebridades e amigos, alguns tecendo uma análise sociológica do papel do Caboclo Alencar na cultura de Itabuna, outros sugerindo o tombamento do “ABC da Noite”, como marco precioso da nossa história.
            Nenhuma dúvida quanto ao merecimento do Caboclo Alencar. A propósito, muitos meses atrás, o escritor itabunense Cyro de Mattos (membro do PEN CLUB e de várias academias, com grande parte da obra premiada, traduzida em outros idiomas e publicada em vários países) neste mesmo jornal, escolheu o conterrâneo Alencar Pereira para homenagear em inspirada crônica, ressaltando sua personalidade invulgar. São atitudes que sinalizam abençoada modificação nos formadores de opinião, “louvando quem bem merece”  como diz o verso de Gilberto Gil.
            Ocorre, no entanto, que o reconhecimento ao “ABC da Noite” traz a lembrança do esquecimento total de um marco  insubstituível que definiu a vida de centenas (ou milhares) dos seus frequentadores: O ABC DO DIA. O que foi o ABC DO DIA? Ninguém lembra, é certo. O ABC DO DIA, ícone  maior da história de Itabuna, foi demolido, vilipendiado, apagado, deletado. Morreu ignorado, sem choro nem vela. O pior é que o ABC DO DIA tinha um mundo de celebridades que poderiam defendê-lo e impedir seu assassinato.  Muitos fecharam os olhos, os  ouvidos e emudeceram por covardia ou conveniência; outros desconheciam o plano sinistro de destruição; poucos, muito poucos, gritaram, esbravejaram, manifestaram a indignação de filhos ultrajados, porque o ABC DO DIA era o pai e a mãe de todos que buscaram seu abrigo e sua orientação. Os cegos e surdos-mudos são de fácil identificação, porque covardes, indiferentes e convenientes e são inúmeros; entre os que nada puderam fazer por ignorar o projeto de destruição, estão celebridades como Jorge Hage, controlador geral da União e Ubaldo Porto Dantas, ex-prefeito desta cidade; gritando indignados através deste jornal apenas Cyro de Mattos, João Otávio Oliveira Macedo e a autora destas linhas, três pessoas comuns do cotidiano itabunense, também ex-alunos do Ginásio Divina Providência, como nossos conterrâneos e sempre amigos Jorginho Hage e Ubaldo. 
            Volto a lembrar o atentado à cultura e à história de Itabuna, consubstanciado na destruição do prédio onde existiu o Ginásio Divina Providência. Dir-se-ia assunto recorrente, resolvido sob a pá de cal dos escombros que apareceram sob a pressão de máquinas fantasmas que trabalharam durante a noite... É verdade. A demolição ocorreu durante a noite. Por quê?  Sabe DEUS! O fato é que a pressa em concluir o “trabalho” antes do amanhecer, fez com que surgissem rachaduras nas paredes da Igreja de Santo Antonio e nos imóveis do comerciante Reinaldo Cruz e livraria “Um pouco de tudo”. É o que dizem as más línguas. Não estou afirmando que ocorreu prejuízo material para os vizinhos do prédio sinistrado, não vi, não investiguei, não inspecionei. Apenas ouvi dizer e a verdade sobre a transferência de domínio e a demolição, a esta altura, nada significa em cotejo com o prejuízo cultural, histórico, moral. É doloroso constatar que tantos metros quadrados que poderiam destinar-se à construção de outros templos de conhecimento e cultura, minimizando a carência de uma cidade que cresce desordenadamente, e o que é pior, sem respeito ao passado, abriguem, hoje, uma loja de departamentos e outra de sapatos populares. Como poderá Itabuna sequer sonhar com o futuro? Quem não teve passado ou o repudia, não existe no mundo real, é filho de chocadeira.
            Que seja homenageado o Caboclo Alencar. Ele merece. Por tudo que representa como cidadão digno da comunidade que consegue, durante décadas, manter um estabelecimento reservado à venda de bebidas alcoólicas fora do rótulo da mediocridade e do estímulo manifesto ao vício. Ele, ao seu modo, faz a diferença. Principalmente porque conseguiu reunir pessoas que proclamam suas virtudes e provocam a celebração dos 83 anos de uma figura humana que integra a memória de Itabuna. É uma façanha que o meu ABC DO DIA não conseguiu. Somente os três itabunenses já citados, eu, Cyro e João Otávio, tentam salvar o que resta de uma vida inteira da dedicação de LINDAURA BRANDÃO DE OLIVEIRA à formação da juventude de Itabuna e de toda a região sul da Bahia.
            Sinal dos tempos, da modernidade, da pós-modernidade, da sociedade líquida, do que quiserem os eruditos de plantão e de ocasião. Pelo menos, nós,  os três sobreviventes, continuamos lutando para provar que o passado existe e serviu de bússola às nossas escolhas. Nós acreditamos que as chocadeiras ficaram para os aviários. Nunca para a vida das comunidades.


*Sônia Carvalho de Almeida Maron é Juiza de Direrito. Presidente da Academia de Letras de Itabuna (ALITA)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Amizade


           Dois repentistas na praça faziam o improviso nos versos que discorriam sobre a amizade. Um elogiava a amizade enquanto o outro procurava mostrar que de maneira sincera ela  não existia neste mundo desde não sei quando. Curiosos que formavam pequeno cinturão  em volta dos repentistas ouviram um  deles dizer a certa altura do improviso sob galope acirrado:
Quem disser que tem amigos
Tem de si pouca ciência,
Amigo só existe aquele
O da própria conveniência.

          Quis dizer com suas impressões realistas da vida que ter o amigo fiel, certo na hora incerta, é a exceção, daí se concluir que  a regra neste velho mundo consistia na amizade ser sustentada através do interesse. O dito popular que afirmava melhor amigo na praça do que dinheiro no caixa não predominava como uma constante  nas relações de empatia entre os seres humanos. A amizade verdadeira, que não espera nada de volta, só acontecia em situações excepcionais.
          Pensando, pensando, a amizade  desinteressada só  quando não há  a competição desumana e desigual pelas coisas materiais ou a vã glória. Na competição selvagem, marca do capitalismo,  uma pessoa enxerga a outra como estranha. Nas  relações duras da luta pela vida,  a afeição, que implica em segredos e solidariedades,  tem pouca chance de achar o seu lugar ao sol.  
          Amizade pura só mesmo na infância quando a vida é uma festa colorida por gestos espontâneos,  em que entram sentimentos nutridos de  esperança e ternura. Daí o poeta dizer que quando a gente fica grande o país da infância é trancado pelos homens com pedaços de alma. Resta a  sensação de uma fruta doce que acaba. Na infância perder ou ganhar é igual a se divertir. Por ser assim em essência, não havendo competição ditada pelas necessidades materiais, naquele território feito de alegria para todos  não funciona  a regra Deus para mim e o diabo para os outros. Estou me referindo à infância feliz, não à pobre e miserável.
         Na juventude, quando no grupo se é envolvido espiritualmente por sentimentos que em si pertencem a todos,  irrompendo do coração para ultrapassar desafios e atingir metas no conhecimento da vida, a gente consegue como na infância fazer boas amizades,  que levam a vida inteira. Quando somos colegas em uma mesma escola, colégio, faculdade,  estamos nesse barco alegre da vida sem competições ferinas. Leve e solta, a criatura humana ainda não provou os  desastres gerados pelo ritmo de nossos estados de necessidade nas rinhas da vida.
         Há quem argumente que uma boa amizade nasce  na mesa de um bar, lugar onde se joga conversa fora ou a mágoa quando se tem a necessidade  ainda maior de desabafar tudo o que está preso no peito. Com este cronista as boas amizades  vêm do tempo da infância e juventude, até hoje perduram, embora sejam poucas.  Outras, de uns tempos  para cá, nasceram graças ao  milagre operado pela literatura.
        Apesar de o mundo das letras ser competitivo, em muitos casos neurótico, até mesmo diabólico,  gerando conquistas para encher as vaidades e os egoísmos, tenho feito  amigos que parecem que já me eram desde muitos e  muitos anos. Alguns deles vivem distante,  nunca os vi pessoalmente. As afinidades eletivas nesse caso forjam uma afeição  sólida a cada descoberta agradável.  A afeição  assim me aproxima  do novo amigo  numa cadeia de instantes recíprocos e suaves. As coisas acontecem em razão das horas iluminadas por impressões de leitura. A empatia é expressa  de modo sincero  com suas ondas de ternura, por correspondência aérea ou  internet.
          A amizade é necessária  para  que o entendimento decorrente do gesto das mãos nas mãos torne a vida fácil, sem dominações, ciúmes  e traições. O ideal era que resultasse duma união geral  para que a vida fosse forte e bela, com rações suficientes para todos. Enquanto tal não acontece, lembro um poema do mineiro Elias José, querido amigo, de saudosa memória,  que só tive o prazer de ver uma vez.  Ele me enviou de Guaxupé, sua cidade natal,  o poema “Amigo” quando ainda era inédito.

                      A palavra AMIGO
                      Abre-se com a gente
E sabe escutar e guardar
Queixas e segredos.
Chora a dor que é nossa,
Faz festa na nossa alegria.

O mundo seria mínimo
E sem a menor graça,
Se não existisse a  graça,
Se não existisse a luz
Da palavra AMIGO.


        Para esse mineiro de inteligência incomum, coração terno, que escreveu mais de cem livros, entre volumes de ficção e poemas, para gente grande e pequena, premiadíssimo, a amizade encantava e  comovia. Fluía no tempo de ardente aprendizagem.