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segunda-feira, 15 de abril de 2024

 

         Memórias Infantis de Graciliano Ramos

         

        Cyro de Mattos

 

        Vê-se em Infância (1945), de Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma pobre e as coisas em estado atrasado, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com batidas leves.  Assim, nas queimaduras de uma poeira áspera que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer hostil fora acostumado aos maus tratos e castigos.

Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco. Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas de dores e incompreensões. As informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira pungente, expostas nas páginas ausentes de serenidade, desde o amanhecer até quando chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.

Dessa poeira cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante. Agora a realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo despojado, focado numa humanidade despreparada para o bem-estar, sempre acompanhada de momentos opressivos.  No discurso que une o passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos românticos, nem ao beletrismo, avultam as atitudes de rancor, seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera sombria feita de niilismo devastador.              

Encontram-se nessas memórias da vida calejada com a hostilidade as marcas pessimistas dos gestos fornecidos pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória, chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca, era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada de sentimentos movidos com a dureza do cotidiano. Montava, atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.

O espírito infantil de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora sempre a mexer-se com uma boca má, olhos que em momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito com suas vozes absolutas. 

Nesse círculo familiar, em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis, absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor. Nesta circulava uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o cinturão grosso. 

Na surra terrível com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso em família.

 

“Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando.  E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)

 

Subalterno da voz absurda admitia que era justo o que se fazia com ele.  Na surra que tomou com o cinturão grosso acontecera seu primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.

De suas memórias infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a marca de coisas desagradáveis.  Chico Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Uma das recordações mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando, sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo. Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma vertebrada e muito ágil. 

De todas as páginas escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa concisa e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.    

Em “Um Incêndio”, o menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a cobertura de folhas de Ouricuri.  Tinha conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João.  Fogo imenso com labaredas altas e fumaça impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno de   um resto de gente, um torrão sem braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia morrido queimada no incêndio.  Havia duas meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando de dentro da cabana as coisas que achava como importantes.  Quando pensou que conseguira salvar todas as coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da entrada bloqueada pelo fogo.

 

“Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo seios nem sexo, perdiam-se os restos da animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente   um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)

 

         Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio. Responsabilizou Nossa Senhora como autora daquela agonia sórdida.  Se a criatura não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria cortando palma de Ouricuri para fazer nova cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação acontecida por força maior, independente da ação humana.  Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do purgatório.  Não lhe convenceu o argumento com a benesse estranha ao drama.  Não lhe pareceu que o fogo do purgatório tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com um defeito de cor, não estava no céu.

 

 “Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia      

   as asas dos anjos”. (pág. 86)

 

         Nessas memórias infantis tomamos conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua ficção regional com personagens vivendo uma atmosfera angustiante coberta de sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. O próprio Graciliano Ramos admitia ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não servem para nada.  Em Buíque, na primeira escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados.  Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos. 

        Vem se dizendo ao longo dos anos que vivemos em um vale de lágrimas. A vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida, alude Jorge de Lima. Constata-se que toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra singular como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos de paisagens calcinadas, sombrias, em que andamos.  

      E o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.   

 

 

Referência

 

RAMOS, Graciliano. Infância, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1945.

 

 

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

 

Mundo Indígena

Cyro de Mattos

 

Bahetá, a velha indígena, ensinava como era importante o milho para o batismo quando então o pajem colocava o nome na criança simbolizando a sua verdadeira alma. Lembrava que algumas partes da anta deviam ser reservadas para os espíritos. Certa porção era preparada e depositada na mata para os encantados. Aconselhava ao caçador que ingerisse infusão de vegetais aromáticos antes de sair para caçar. A escolha do vegetal dependia da espécie de animal escolhido para caçar.

 

Pataxós – Wikipédia, a enciclopédia livre

 

 

 

Acreditava que alguns alimentos não deviam ser consumidos em certo período para evitar transtorno. As mulheres, após darem à luz, não comem carne de tatu ou de cágado d’água, tais alimentos tornam o recém-nascido com a saúde precária, são proibidos de serem ingeridos pelas indígenas da aldeia.  

Deviam ter gratidão pelo tamanduá, não matando, nem se alimentando dele. Foi ele quem ensinou cantos e danças, pois em outros tempos já tinha sido gente como eles. Um caçador oferece para uma mulher um alimento que trouxe da mata, e, em retribuição, recebe uma comida por ela preparada. Dessa forma, a amizade entre as famílias era constantemente fortalecida.

        Chamava atenção para alimentos considerados como sagrados, agindo espiritualmente naquele que se alimenta deles como ingredientes positivos. No período da puberdade, o beiju com molho de pimenta, o peixe cozido e a cabeça de peixe são benzidos e defumados antes de serem consumidos pelas meninas.          

Conhecia dezenas de lendas pertencentes ao seu povo. Era com alegria contagiante que contava a lenda da mandioca. Explicava a sua história e a origem.  Mani era ainda pequena e muito querida pela aldeia.  Neta do cacique, foi motivo de tristeza para o chefe da tribo quando apareceu grávida. Isso porque não era casada com um bravo guerreiro, como ele desejava.

O cacique obrigou a filha a dizer quem era o pai do seu filho, mas ela   dizia que não sabia como tinha ficado grávida. A desonestidade da filha desagradava muito o cacique. Até que um dia ele teve um sonho que o aconselhava a acreditar na filha, ela continuava pura e dizia a verdade ao pai. Desde então, aceitou a gravidez e ficou muito contente com a chegada da sua neta.

Um dia, perto de clarear a manhã, Mani foi encontrada morta na taba. Ela simplesmente tinha morrido durante o sono e, embora sem vida, apresentava um rosto alegre. Foi enterrada dentro da sua oca por sua mãe, cujas lágrimas umedeciam a terra tal como se estivesse sendo regada. Dias depois, nesse mesmo local nasceu uma planta, diferente de todas as que a tribo conhecia.  Percebendo que a terra estava ficando rachada, cavou na esperança de que pudesse desenterrar sua filha com vida. A mãe da menina encontrou uma raiz, a mandioca, que recebeu esse nome em decorrência da união do nome de Mani e da palavra oca, que significa moradia indígena de uma ou mais famílias.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

 APRENDER

Edson Mendes

A parte não existe sem o todo. O todo não existe sem a parte. Entender a complexidade nos obriga a pensar. E, pensando-a, compreender que os tecidos, tecidos, é que dão vida e substancia à grande teia da existência. O pensamento complexo, que é sintético e, portanto, dialético, reúne, religa, reconecta o aparentemente fragmentado, tornando-o sistêmico e recursivo, contraditório, mas real.

O todo é, ao mesmo tempo, maior e menor que as partes. A perna decepada continua existindo no cérebro que sente. A tapeçaria, vista de longe, esconde os fios que a tecem. De muito perto, contudo, os vemos – mas não à peça. As duas dimensões, do complexo e do simples, estão contidas e contêm-se como o côncavo e o convexo. Como a vida e a existência, que não são iguais, porque, se é certo que uma pedra existe, já não é tão certo que viva.

Nós não compreendemos. Não sendo possível argumentar sem o alicerce da complexidade, o pensamento critico torna-se obtuso. É preciso, mais que ouvir, escutar, mais que ver, enxergar, mais que entender, compreender. Simplistas, simplificamos. Alheios, alheiamo-nos. Esquecemos o motivo pelo qual inventamos a cidade, a praça, a calçada, a escola, a prisão. Seu uso privatizado, e seu desuso coletivo, nada significam para o olhar dos insensíveis, ou ignorantes, que somos todos nós quando só enxergamos o que vemos.

Nós não aprendemos. Todos os dias, quando os dias nascem, reinventamos a roda. Cometemos os mesmos erros. Desde o planejamento de proles, esgotos e hospitais até o traçado das ruas, dos perímetros e das regras mais elementares de convivência. Por esses dias, a moda é a linguagem. Ou a linguagem é a moda, você pode escolher. Sendo a palavra, escrita ou falada, apenas parte da linguagem, ao “simplificar” os códigos tornamo-nos simplistas, incompletos, inconclusos, parciais, simplórios. As palavras, mesmo imperfeitas, traduzem o que pensamos, e seu significado deve ser comum a todos. Não havendo esta convenção, haverá, é certo, cada vez mais, o desencontro assimétrico entre o que se diz e o que se faz.

Nós não sabemos. Reduzir para entender, reunir para interpretar: como chegar à síntese sem o interstício da análise? A dificuldade de entender, compreender, ver e enxergar o complexo nos torna dependentes de mais conhecimento. E isto é bom, porque a construção do conhecimento exige mais, e não menos. É impossível tornar simples o que é complexo. Os dois polos, do simples e do complexo, formam a esfera da práxis, que se alimenta da reflexão. Nivelar pelo menos, e não pelo mais, ou mesmo pela utopia, dificulta o raciocínio e compromete a inteligência, ao contrário do que pregam os simplificadores. Porque não compreendemos, e não aprendemos, e não sabemos, perde-se o sentido, e sem o sentido perdemo-nos todos na ilusão metafisica. Ao tomar a parte pelo todo, ou o efeito pela causa, ipsis litteris, tornamo-nos ainda mais tolos do que aqueles que supomos o sejam por cultivarem costumes antiquados.

A linguagem que dizemos culta, complexa e contraditória, não é um mal, e sim uma contingência. Necessária para ir além das superfícies. Os que a condenam são aqueles que não a cultivam. A variante coloquial é o seu complemento e, portanto, boa e necessária também. Não dependem do gosto, porque se trata da essência. Cuidar, cultivar, zelar são virtudes. O seu contrário, mesmo sendo moda, sempre será vício.

13.03.3024
 

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Carpe Diem!
Edson Mendes de Araujo Lima, MSc
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quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Editora de Portugal Publica

Outro Livro de Cyro de Mattos

Inspirado no Rio Cachoeira

 

A editora Palimage, de Coimbra, Portugal, acaba de publicar Águas de Meu Rio, de Cyro de Mattos, livro que contém um poema dividido em vinte partes em que o autor denuncia em versos pungentes e doloridos o estado atual do Rio Cachoeira, largado ao abandono como um grande esgoto que escorre a céu aberto.  Com prefácio da poeta e musicista Denise Emmer, da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, Rio de Janeiro,  traz na capa uma foto histórica com o autor sentado em uma pedra das margens do rio, observando as lavadeiras quando lavavam as roupas numa manhã ensolarada, em 1966.  No Brasil, Águas de Meu Rio foi publicado pela Editora Ibis Libris, do Rio de Janeiro.  Este livro forma com os volumes Vinte Poemas do Rio e O Discurso do Rio a Trilogia das Águas, inspirada no rio Cachoeira.  

A Editora Palimage (www.palimage.pt) publicou anteriormente  cinco livros do poeta grapiúna e que são estes:  Vinte Poemas do Rio, O Discurso do Rio, Vinte e Um Poemas de Amor, Ecológico e Poemas Ibero Americanos. Sobre a poesia de Cyro motivada pelo rio de sua terra natal disse o poeta Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras: “Poeta de voz límpida como o seu rio, de música e sabedoria do silêncio”. E a poeta e ficcionista Stella Leonardos, detentora de prêmios literários importantes,  observou: “A poesia de Cyro de Mattos é da boa, inventando o seu próprio ritmo (como queria o mestre Manuel Bandeira) dentro do soneto, com recursos verbicovisuais e, inclusive, neologismos adequados”.

sexta-feira, 29 de março de 2024

 

Crônica da Procissão da Sexta-Feira Santa

 

                 Cyro de Mattos

 

Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer por isso.

            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.

            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus na cruz de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus, muita gente chorava.

            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora, o cinema quase vinha abaixo com as vaias da plateia.

           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas principais da cidade sob os cantos orantes, que falavam de pesares  e perdão:

 

                             Perdoai, Senhor, por piedade,

                             Perdoai, Senhor, tanta maldade,

                             Antes morrer, antes morrer

                             Do que Vos ofender,

                             Perdoai, Deus do amor.

            

        A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto, as pessoas sofrendo pelas pedras do caminhoGente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo Salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido roxo, que tocava os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário.

            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.

                             

                           Pai salvador,

                          Misericordioso,

                         Toca no meu peito

                        O sofrimento Teu.                  

                        Fadiga, sede, fome.

                       Cuspe, espinho, sangue,                   

                       Chicotada, prego,

                       Madeira feita cruz,

                       Meu Pai, perdoai

                       Os pecados meus.

 

Naquele ano, em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja, para ser colocada no altar, quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.

No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As botinas novas apertavam os meus pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “Os calos estão doendo muito, não aguento mais”, disse aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.

Preferi não obedecer à minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse uma situação muito pior do que aquela que se deu com a beata Detinha. Como ela, eu desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.

Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão com a sua voz bondosa, escutei ela dizer que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.

Mas muita gente reparou depois na atitude de minha mãe, achou que menino mimado daquele jeito poderia não dar certo no futuro.       

terça-feira, 26 de março de 2024

 

Dois Poemas na Semana Santa

Cyro de Mattos

 

Via impiedosa  

 

Cuspido no caminho  

por onde passa respinga

sangue dos espinhos  

que a carne perfura.

Do ódio não desistem 

gargantas que apedrejam,

  uma coroa sabe a dor

 do vento nas manadas

sem rumo enfurecidas. 

 

Todos os rancores   

vergastam no rosto,     

abomináveis renegam

a união como verdade.  

Tudo é solidão, é dor,      

o mundo que se cala

com a surra desferida  

 no rei único do perdão.  

 

Pelas ofensas cometidas,

sei que não sou digno

de entrar em tua morada,

mas basta uma só palavra 

para que eu seja salvo.   

Em tuas mãos entregue,

 faz de mim tua criatura, 

recolhe-me da injusta onda

entre vilezas tantas vezes

tingindo de roxo o coração.  


Canto de Amor

 E todo este peso

terrestre fez-se abrigo

na flor da comunhão,

de braços abertos

clamas como cacto

em amanhecer áspero

de vento sem querer

teu gesto da fraternidade.

 

E dignos não somos

de olhar este rosto

que pende no amor

do sangue derramado.

Solitários caminhos

 sem ternura cruzamos

sem querer ouvir tua voz

onde tudo é amor e perdão.

 

De teu canto do bem

pelos que têm fome e sede

há o sentimento que vem,

pode ir-se no dilema do pacto.

Das tuas boas obras fica 

o impacto mais poderoso

do ofertar do que em receber.

quinta-feira, 21 de março de 2024

 

             Terras de Salamanca

             Cyro de Mattos                           

 

Em outubro de 2013, participei do XVI Encuentro de Poetas Iberoamericanos em Salamanca, Cidade de Cultura e Saberes. Na oportunidade fiz lançamento de meu livro Onde estou e sou/Donde Estoy y soy , livro que primeiro foi publicado no Brasil e depois na Espanha pela Verbum Editorial, de Madri. Dei depoimento na universidade sobre minhas atividades literárias no Brasil, ao longo dos anos. Recitei poemas de minha autoria no Liceu de Salamanca lotado, juntamente com outros poetas presentes ao XVI Encuentro. Doei livros de minha autoria ao Centro de Estudos Brasileiros, em ato que constou da programação do evento que reunia poetas íbero- americanos.

Amizade que ficaria selada para sempre foi a que fiz com o poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart, o coordenador dos Encuentros, figura rara como construtor de pontes entre os poetas ibero-americanos que comparecem ao evento de repercussão internacional. Professor da Universidade de Salamanca, esse incansável disseminador de poesia é poeta de alto nível, traduzido e publicado em mais de vinte idiomas. Um ser humano que veio a esse mundo para iluminar com a poesia a parte noturna de que somos feitos. Tinha em Jaqueline, sua princesa, a mulher ideal para acompanhar-lhe na aventura da existência.

Durante o Encontro tive a oportunidade de saber que Salamanca foi no início uma aldeia na colina, estava com ela séculos sobre o rio Tormes, inclinados à disseminação da arte e ao saber. Testemunhavam a passagem do tempo na formação da paisagem lendária váceos, vetões, romanos, visigodos e muçulmanos. Uma vocação universitária ressoava sob os passos do sol e da chuva, sustentava uma grande tradição de esplendor monumental. Por sua beleza antiga e riqueza histórica, o tempo foi justo ao fazer com que Salamanca ficasse conhecida como a Cidade de Cultura e Saberes.

Ficamos sabendo que na Plaza Mayor ocorrem falares diversos, decorrentes de frequente convivência entre o alegre e o triste, nisso que é esperança e incerteza em nossa caminhada na vida. Capítulos assim ali escorrem da vida cidadã, muitas vozes de mim e de outros fazendo o intercâmbio da natureza humana nesse antigo teatro da vida. Nas ruas iluminadas pelo ouro da cultura e do saber não se pode deixar de pensar que nelas andaram Fray Luiz de Léon, Unamuno, Francisco de Vitoria, Francisco de Salinas, Cervantes, São João de La Cruz, Luís de Gôngora, Santa Teresa de Jesus, Lope de Vega, Mateo Alemán, Vicente Espinel, Quevedo e Calderón de la Barca.

Naquelas ruas foram gravados os gestos da sabedoria e santidade humanas, refletidos por duas extraordinárias catedrais. Antes que adentre na cidade, o visitante é recebido com a alma gêmea delas. Numa casa de guardiã memória, conchas representam a cidade por vários rumos, decoram o mundo que estaciona para vê-la. Nas dobras do tempo, Salamanca oferta encantos ao visitante, inventa-se nessa crença de pedra, história e vasta fé. Apresenta-se sempre como um desafio, um mito, uma abertura, um enigma. De sentidos múltiplos, memórias que nela achamos e nos vemos inseridos em séculos de beleza antiga. 

            A fachada de casas, igrejas e edifícios basta para entender que estamos na história. Caminhar é a forma de descobrir segredos de quem também sabe ser contemporânea, jovial com estudantes de tantos lugares misturados na face agitada da cidade recheada de tradições na bela e antiga arquitetura. Quando a noite cai, luzes enchem a parte noturna, lugares em que o coração aprende que o amor se faz amando o mito, que se apodera da alma.

          Ó Salamanca, aqui o que vejo na tua fronte faz-nos como o ser da história. Essa luz que de ti se espraia a todo instante vem de teu chão para erguer os saberes seculares nos beirais floridos. 

 

sexta-feira, 15 de março de 2024

 

Livraria Civilização

     Cyro de Mattos

 

Quando estudante universitário, uma das coisas que gostava era de ir à Rua Chile. Quase todos os dias, visitava a Livraria Civilização Brasileira como uma necessidade que o tempo impunha, semelhante àquela quando se tem sede ou fome. Na Livraria Civilização percorria as prateleiras, procurando achar algumas dessas raridades literárias, que há algum tempo estivessem com a edição esgotada. Perguntava ao vendedor Toninho se havia chegado algum livro novo de literatura. Examinava na vitrina as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Lima Barreto. Os livros de Dostoiewski, Hemingway, Faulkner, Sartre e Camus. Sagarana, de João Guimarães Rosa, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, lá estavam para causar impacto e opiniões acaloradas entre os companheiros de geração.

 Era na Livraria Civilização que me encontrava com os companheiros de geração, à qual alguns deles pertenciam por afinidades eletivas, enquanto outros em razão da idade. Ildásio Tavares, Alberto Silva, Ricardo Cruz, Marcos Santarrita, Orlando Sena, Olney São Paulo, João Ubaldo Ribeiro, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Davi Sales, João de Góes Berbert, Carlos Falk e Carlos Nelson Coutinho. Encontrava, quase todos os dias, com três ou quatro desses companheiros de militância cultural, que se iniciava como botão ou rosa entreaberta no mundo da ideia e emoção.

 Conversava com Calasans Neto, Jurema Pena e Florisvaldo Mattos. Via o professor Machado Neto com os olhos atentos por trás dos óculos de lentes fortes perscrutando algum exemplar, provavelmente de sociologia ou filosofia. Cruzava com Hélio Rocha, Nélson de Araújo, Vivaldo Costa Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Sonia Coutinho. Era comum naquele tempo Glauber Rocha aparecer com Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres, ou ainda com Carlos Anísio Melhor e Oto Bastos. Inteligência privilegiada, Glauber Rocha formava com os seus companheiros de geração um grupo de intelectuais irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador.

Na Rua Chile, às sextas-feiras, pelo fim da tarde, gostava de ficar olhando nas vitrinas as camisas da última moda, a serem usadas pelos jovens no verão. Depois, naquele momento antecedido de ânsia, lá ficava no passeio de alguma loja, recostado à parede, vendo as garotas que desfilavam com uma ginga provocante. Mulatas, morenas, louras. Nelas aquele cheiro bom de maresia e ventos por toda a extensão da pele. Minhas preferidas eram as mulatas. De olhos gateados, seios despontantes, curvas sensuais. Não podia ver uma dessas mulatas com os quadris rebolando, com todo aquele sabor na pele de fruta gostosa, como já me referi. O romancista João Ubaldo Ribeiro se aqui estivesse agora não me deixaria mentir.

            Era lá na Livraria Civilização Brasileira que, entre um cafezinho e outro, intelectuais discutiam e compravam livros. A livraria famosa acabou num incêndio. A Rua Chile despareceu depois que a cidade transportou sua vida empresarial para o Polo Iguatemi.

        Como conforto de tudo que se evaporou, o tempo me fez autor de 70 livros, de diversos gêneros. Alguns fossem publicados também em outros idiomas.  Quis que vários deles fossem adotados na escola e universidade. Constassem do acervo de livrarias importantes, como  Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, Biblioteca da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Fundação Eugênio de Andrade, Porto, Portugal; Biblioteca da Universidade de Austin, Texas;  Biblioteca do Congresso, Washington, USA,  Biblioteca da Universidade do México,  EUA; Biblioteca Nacional (Rio), Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, Biblioteca Pública do Estado da Bahia, Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, Salvador; Biblioteca Municipal de Itabuna, Biblioteca da Universidade Estadual de  Santa Cruz, Sul da Bahia, Biblioteca da Universidade da Maramata, Ilhéus; Biblioteca do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões, Centro de Documentação, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Biblioteca Pública Central dos Barris, Salvador.

            Nessa estrada dos livros, a essa altura comprida, nunca vou me esquecer do vendedor Toninho, da Livraria Civilização Brasileira. Vendeu muitos livros em prestações razoáveis ao moço do interior, de mesada apertada, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

           Sempre me reservava boas surpresas.

        - Olhe aqui o que eu guardei para você – mostrava-me o livro com o riso costumeiro.

        Era o último exemplar de O Muro, contos, de Jean Paul Sartre,

quinta-feira, 7 de março de 2024

 

           Um Pouco da Vida do Pai

            Cyro de Mattos

 

         A mãe contou ao filho um pouco da vida do pai quando era rapaz.  Nunca teve ajuda de ninguém para sobreviver na dura lei da vida. Chegar ao que chegou como homem dono de um patrimônio respeitável, sem nunca ter cursado uma escola, aprendendo a ler, escrever e fazer conta com esforço próprio, era para aplaudi-lo sem economizar as palmas.  Fizera o patrimônio com esforço, muito trabalho e esperteza nos negócios.  Era por isso que pessoas na cidade não hesitavam em dizer que o pai era um homem admirável, exemplo de vida que deveria ser seguido por outras pessoas, que quisessem fazer fortuna. 

         O pai trabalhou na roça de fazendeiro rico quando rapazinho, o buço sombreando o lábio. Roçou pasto de plantas daninhas com foice e facão afiados, limpou chácaras e represas com água no pescoço. Derrubou com o machado árvore grande que servisse para fazer tábua, estaca, ripa, peça para esteio, cancela e cumeeira de casa.        

       Fez calo nas mãos, de tanto derrubar a árvore com o machado.  Veio para a cidade e passou a ser balconista numa loja da rua do comércio, que vendia artigos para campo e cidade. O dono da loja deixava que o pai dormisse embaixo do balcão. Acordava cedo, perto de clarear o dia. Fazia o café num pequeno cômodo, nos fundos da loja. Bebia sem um pingo de leite, acompanhado do pão amanteigado. Usava para fazer o asseio do corpo o pequeno banheiro da loja, com uma pia, chuveiro e vaso sanitário. Era ele quem cedo abria a loja para o movimento do dia.

         Juntou dinheiro com parte do ordenado que ia ganhando a cada mês e se afastou do emprego de balconista na loja. Comprou uma vendola de beira de estrada, nos arredores da cidade. Acordava de madrugada, fazia a refeição do café da manhã, a seguir abria a porta da frente da vendola. Morava num cômodo estreito, ele mesmo lavava sua roupa no riacho que passava nos fundos da vendola. Ensaboava, enxaguava, botava para secar no varal. Com a roupa seca e limpa, usava o ferro de passar para deixá-la pronta de ser usada na semana.  De segunda a sábado, atendia na vendola os que passavam para o trabalho na cidade e ali paravam para comprar alguma coisa ou os que voltavam das compras que faziam no comércio e se dirigiam para as roças com os burros carregados de mantimentos.

         A vendola fora o começo de tudo para o pai fazer o patrimônio. Foi dela que teve umas rendas miúdas, mas frequentes, dando para juntar o dinheiro que ganhava, guardado no baú. Foi assim que com trabalho e tirocínio construiu a primeira avenida de casinhas no outro lado do rio. Quando isso aconteceu, ele mesmo era o pedreiro, às vezes fazia o papel de servente da obra, mexendo com a enxada a massa de cimento, misturando-a com areia e um pouco de água, derramada na lata, até que desse no ponto para levantar e rebocar a parede de tijolo.

       Tempos depois deu para comprar terrenos baldios nos bairros e centro da cidade. Comprava casas velhas, reformava-as para que fossem alugadas. Um dia adquiriu uma pequena fazenda de cacau naquela região que tinha a fama de possuir a terra fértil, onde tudo que se plantava dava com fartura. Como as estações eram temperadas de sol e chuva, o que se plantava vingava na hora certa.   (Capítulo do romance Do Menino Se Fez o Homem, em andamento para ser impresso, com o selo editorial da Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador.)